Liturgia das Horas: oração de todo o Povo de Deus. Ideal ou realidade?
Manoel Gomes Filho*
Antecedentes judaicos
Indiscutivelmente a origem da
Liturgia das Horas está no modo judaico de rezar. Os primeiros cristãos
rezavam, embora com espírito e sentido novos, a partir dos modelos e tempos de
oração vividos no judaísmo. Por isso não somente no que se refere ao Ofício
Divino, mas também em tantos outros elementos de sua liturgia, os cristãos
estão intimamente ligados à prática judaica. O papa Pio XI, consciente dessa
relação, disse certa vez que “somos espiritualmente semitas”.
Segundo
Hilario Suñer, “a oração cristã deve ser estudada à luz de seus antecedentes
judaicos”. Torna-se,
desse modo, impraticável um estudo sério da Liturgia das Horas que não dê a
devida relevância à oração judaica.
Na liturgia
do templo de Israel havia dois sacrifícios de instituição perpétua chamados Tamid.
Esses sacrifícios eram celebrados pela manhã e pela tarde. Embora não pudessem
estar presentes, os judeus se uniam a estes sacrifícios por meio de preces. “O
povo de Israel orava duas vezes ao dia, unindo-se ao sacrifício Tamid de
Jerusalém, ao amanhecer e ao entardecer”.
Além desses
dois momentos, algumas fontes se referem a uma terceira oração rezada ao
meio-dia. Essa, no entanto, “resulta historicamente menos comprovada que as da
manhã e da tarde, pois não corresponde a nenhum dos sacrifícios perpétuos”.
Essa
estrutura de oração (oração da manhã e oração da tarde) será a base sobre a
qual o Ofício Divino em suas origens se erguerá. Há testemunhos
neotestamentários (At 2,46; 3,11; 5,12) de que os apóstolos continuaram por
algum tempo frequentando o templo, fazendo ali suas orações e pregando o
Evangelho de Cristo.
A partir
desses elementos, Alberto Beckhäuser afirma que “o ritmo da oração diária da
Igreja, denominada Liturgia das Horas, tem seus antecedentes na experiência
religiosa do povo de Israel, com forte expressão pascal”.
Origens e desenvolvimento do Ofício
Desde muito
cedo na história da Igreja houve uma organização no que se refere aos tempos da
oração. As horas utilizadas pelos judeus, como foi visto anteriormente, foram
tidas pela Igreja antiga como momentos privilegiados para a oração. Para
Neunheuser, “apesar de uma certa flutuação, podemos dizer que se conheciam no
século I d.C. duas ou talvez três horas fixas de oração: pela manhã, à tarde e
ao meio-dia”.
São
conhecidos por meio de alguns textos bíblicos os momentos em que os cristãos
rezavam: a descida do Espírito Santo na hora terça, a subida de Pedro ao quarto
superior para rezar a hora sexta, a comunidade de Jerusalém em vigília à noite,
quando Pedro é tirado do cárcere, e tantos outros. Em relação ao conteúdo,
parece que desde cedo a comunidade substituiu o Shemá pelo Abbá. As
variações presentes nos sinóticos, quando traduzem o Shemá, segundo
Joachim Jeremias,
indicam algo nesse sentido.
Nos
primeiros séculos não existe ainda uma organização fixa dos elementos que
formam o Ofício. Isso se dará somente depois da Paz de Constantino. A Didaqué
fala em três momentos de oração, tendo o Pai-nosso como conteúdo. Ainda no
primeiro século, Clemente de Roma fala de “tempos sagrados” e sua importância
para a vida de oração. Hipólito de Roma, em sua Traditio Apostolica,
fala de sete momentos de oração, prática talvez restrita à sua comunidade
cismática. Tertuliano diz que não existe nenhuma prescrição quanto aos momentos
em que se deve rezar, mas apenas que se reze sempre. Mesmo assim, ele fala de
“horas legítimas” que seriam as Laudes a as Vésperas.
Pode-se
afirmar, portanto, que desde a era apostólica havia o costume de orar três
vezes ao dia, com especial destaque para Laudes e Vésperas.
Não há
muitos elementos para determinar se essas orações eram feitas comunitariamente,
ou quais delas teriam essa modalidade. Sabe-se, no entanto, que todos eram
chamados a essa prática.
Somente com a organização do
Ofício torna-se possível ter isso claro. Segundo Beckhäuser, “a partir do
século IV, (...), vão-se formando duas tradições bem definidas de oração
comunitária da Igreja: o ofício da igreja catedral e o ofício monástico”.
O ofício da catedral seguia o cálculo
do tempo dos judeus, ou seja, a experiência pascal diária. Tratava-se de um
ofício simples, com a participação de toda a comunidade: bispo, presbíteros,
eremitas, leigos etc. A oração da manhã e a da tarde eram os dois momentos mais
importantes.
Os monges,
influenciados pelas palavras do Senhor sobre a necessidade de “orar sempre, sem
nunca deixar de fazê-lo” (Lc 18,1), organizaram seu ofício de acordo com o modo
romano de calcular o tempo. Surgiu, assim, o ofício monástico. Em certos
ambientes monásticos, devia-se rezar a cada hora do dia. Depois, serão
acrescentadas neste ofício a hora Prima e as Completas.
Por
diversos motivos, o ofício catedral entrou em decadência. Com isso a forma
monástica do ofício se espalhou por toda a Igreja, tornando-se a forma oficial
de oração. Essa mudança, no entanto, trouxe consequências negativas: “com sua
carga monástica, (...), essa forma de oração se limitou praticamente às ordens
religiosas e ao clero, deixando o povo distante, com suas devoções”.
A partir
dessa época, cada vez mais os fiéis leigos foram se afastando da Liturgia das
Horas. Os clérigos e monges eram encarregados de rezar por todos e o Ofício
Divino passa a ser entendido como obrigação e especialidade de padres e
religiosos. Pensamento que ainda persiste em muitos ambientes.
Segundo P.
Salmon, “procurar-se-ia em vão uma decisão formal da autoridade que desse força
de lei a esta evolução; esta resultou espontaneamente da obrigação que os
clérigos de cada igreja tinham de participar na oração das horas”.
Foi
necessário esperar o Concílio Vaticano II para que houvesse uma grande reforma
no que concerne à Liturgia das Horas. No período entre o que se costuma chamar
“monastização” e o Vaticano II o Ofício Divino foi obrigação do clero e dos
religiosos. Também nesse período o Ofício foi perdendo seu caráter comunitário
e tornando-se, cada vez mais, oração privada. Os outros fiéis deveriam
alimentar sua fé por meio de devoções como o Rosário, o Ângelus, a Via-sacra
etc.
A Liturgia das Horas a partir do Vaticano II
“Com o
Concílio, os fiéis leigos são novamente convidados a beberem da Liturgia das
Horas, fonte abundante de espiritualidade cristã”.
Essas palavras de Beckhäuser se referem ao número 100 da Constituição Sacrosanctum
Concilium em que, depois de falar das diversas classes de fiéis obrigadas
ao Ofício, declara: “Recomenda-se também aos leigos que recitem o Ofício
Divino, quer juntamente com sacerdotes, quer reunidos entre si, e até cada um
em particular”.
O Código de
Direito Canônico, também depois de explicitar quem está obrigado ao Ofício, diz
que “também os outros fiéis são vivamente convidados, de acordo com as
circunstâncias, a participar da Liturgia das Horas”.
Elaborado tendo a eclesiologia do Vaticano II como fundamento, percebe-se a
abertura do Código para que todo o povo de Deus reze a Liturgia das Horas.
O Catecismo
da Igreja Católica , publicado quase 30 anos depois da Sacrosanctum
Concilium, traz uma afirmação de muita importância para o tema aqui
tratado: “A Liturgia das Horas é destinada a tornar-se a oração de todo o povo
de Deus”.
A recomendação dos padres conciliares encontra aqui seu pleno desenvolvimento.
A Liturgia das Horas é oração litúrgica por ser a oração de toda a Igreja:
leigos, consagrados e ministros ordenados.
Considerações finais
Embora
resumidamente, foi apresentado um percurso histórico da Liturgia das horas que
tornou possível perceber como foi se formando essa oração e quais as suas
características iniciais. Surge inspirada no modo judaico de rezar, tem como
característica a santificação do tempo, é rezada por todos os fiéis, individual
ou comunitariamente, sendo, de fato, oração de todo o povo de Deus.
Viu-se
também como em determinado momento essa oração tornou-se “propriedade” dos clérigos
e religiosos e como a Igreja, por meio
do Concílio Vaticano II e textos posteriores, busca “devolver” essa oração a
todo o povo de Deus.
Já existem
algumas iniciativas (periódico, aplicativo, site) que buscam popularizar a
Liturgia das Horas, mas muito ainda precisa ser feito.
Os
ministros e pastores devem incentivar a oração das horas por parte dos leigos e
orientá-los para que a compreendam e rezem frutuosamente. É necessário
compreender que o povo de Deus necessita de alimento sólido e que a Liturgia
das Horas tem muito a contribuir no processo de amadurecimento da fé de cada
fiel. Que ninguém seja privado da possibilidade de unir-se à Igreja para elevar
a Deus o louvor que Cristo introduziu na terra.
* Seminarista paulino, estudante de Teologia na Faculdade de São Bento em São Paulo.