A Eucaristia:
teologia e prática diante das
deformações atuais
Pe.
Gregório Lutz
1. Introdução
Se
quisermos recordar a teologia da Eucaristia e analisar a sua prática
celebrativa diante das deformações atuais, nada parece mais conveniente do que
partir da maneira de como celebramos a missa hoje em dia. Além de constatar
esta situação, devemos analisá-la, e para isso devemos ter diante dos olhos a
origem e a história da eucaristia, assim como a sua teologia, para
compreendermos a situação atual e em que consistem eventuais deformações.
Além
da história e da teologia, devemos ter presentes os livros litúrgicos
pós-conciliares com suas introduções e os documentos conciliares e
pós-conciliares sobre a eucaristia. Assim teremos os critérios para julgar a
situação atual e para dar sugestões que poderão ajudar a corrigir deformações
que hoje se observam, e para celebrar a eucaristia com maior fidelidade a
exemplo e conforme a ordem que Jesus nos deu na última ceia. No ver e nas
pistas para um agir, este estudo se limitará à prática celebrativa no Brasil.
2. A pluralidade dos jeitos de
celebrar e a unidade substancial do rito
Quem
já participou de celebrações eucarísticas fora do Brasil sabe por experiência
pessoal, e muitos outros sabem por terem ouvido ou lido, que no Brasil
celebramos a liturgia e, particularmente a missa, de uma maneira diferente do
modo de celebrar na Europa e em outros continentes, também dos países vizinhos
na América Latina. Além disso, dentro do Brasil celebra-se a missa, embora
quase sempre de um jeito mais ou menos brasileiro, de maneiras diferentes, por
exemplo: nos centros das grandes cidades ou em suas periferias ou no campo, nas
diversas regiões do Brasil e conforme as características de origem étnica da
maioria que compõem as assembleias litúrgicas.
Nas
celebrações eucarísticas dos movimentos eclesiais espelham-se, às vezes, fortemente
o espírito e as orientações que vêm de fora do Brasil, sobretudo dos países de
origem desses movimentos. Evidentemente, celebra-se de modo diferente também
com crianças, jovens e idosos e em cada comunidade eclesial. Embora haja ainda,
diante desta pluralidade dos modos de celebrar, pessoas com saudades dos tempos
idos em que a missa era celebrada, até nos menores detalhes, de modo idêntico
em todas as igrejas, em todas as partes do mundo, em geral se aceita e se
aprecia a superação da uniformidade e do fixismo que dominaram, sobretudo
depois do Concílio de Trento. O Concílio Vaticano II sancionou esta liberdade
na maneira de celebrar, tão desejada pelo movimento litúrgico, e incentivou
adaptações e até verdadeira inculturação da liturgia.
Lemos,
por exemplo, no documento do Concílio Vaticano II sobre a liturgia,
Sacrosanctum Concilium: “A liturgia consta de uma parte imutável, divinamente
instituída, e de partes suscetíveis de mudança” (SC 21); “A Igreja não deseja
impor na liturgia uma forma rígida e única para aquelas coisas que não dizem
respeito à fé ou ao bem de toda a comunidade” (SC 37); “Salva a unidade
substancial do rito romano, se dê lugar a legítimas variações e adaptações para
os diversos grupos, regiões e povos” (SC 38). Portanto, conforme o Vaticano II,
é plenamente legítimo que no Brasil se celebre a missa de modo diferente da
maneira de celebrar em outros países e continentes, e que dentro do Brasil haja
diferenças no jeito de celebrar, conforme as regiões, comunidades e grupos, à condição
que seja sempre a celebração da eucaristia como a herdamos de Jesus Cristo e
observando o que é substancial no rito da missa e, portanto, não sujeito a
adaptações e variações.
3. Constatação e análise de
deformações
Depois
de termos lembrado a legitimidade de diferenças na celebração da eucaristia, de
lugar para lugar, de comunidade para comunidade, de grupo para grupo naquilo
que não é invariável, podemos agora elencar deformações na prática celebrativa
da eucaristia que se observam no Brasil.
a)
Missas-Show
Chamam
a atenção, em primeiro lugar, as assim chamadas missas-show. Não só aquelas
missas com participação de dezenas e centenas de milhares de pessoas, que frequentemente
são também transmitidas pela televisão; podem ser igualmente as missas
dominicais em nossas paróquias e comunidades, nas quais, sobretudo os
instrumentistas e um grupo de cantores, talvez também quem preside e os outros
ministros, se sintam e se apresentem como num palco de teatro ou mesmo como num
show, de modo que a assembleia preste muito mais atenção aos que estão no palco
do que ao mistério que se supõe estar sendo celebrado. A música sobrepõe-se
nestas missas de tal modo à palavra cantada, que esta não mais se entende, que
só se vibra com a música, talvez com todo o corpo e que se chegue, às vezes,
quase a um estado de transe. A proclamação da palavra se torna facilmente
secundária e o seu conteúdo nem parece interessar. A resposta da comunidade no
canto não é adesão à palavra proclamada ou o mergulho no mistério que se
celebra. A oração eucarística ou outras orações são sentidas, talvez, como
momento de descansar ou de espera vazia até a próxima música.
b) O canto na missa
O
canto litúrgico não cumpre sua função quando é abafado pelos instrumentos, e
menos ainda quando não condiz com o mistério celebrado. Acontece que os
cânticos não são escolhidos em consonância com a festa ou o tempo litúrgico ou
o momento ritual. Às vezes, eles não exprimem o mistério de Cristo e não
conduzem para dentro dele. Canta-se no início da missa um cântico que não é de
entrada, e assim outros que não condizem com a respectiva parte da missa. O que
se canta, às vezes, como canto do Glória ou do Santo? Raramente se segue a
tradição antiga e muito recomendável que o canto de comunhão retome o
evangelho; embora não se possa reprovar, neste momento, um canto propriamente
de comunhão. Imperdoável é quando depois da narrativa da instituição da
eucaristia, em lugar da resposta prevista ao Eis o mistério da fé se entoa um
canto de adoração ao santíssimo sacramento. Assim, se esconde à assembleia o
que a missa tem de mais próprio e essencial: Ser celebração da memória da morte
e ressurreição do Senhor, como Jesus mesmo mandou.
Diz-se
da reforma protestante do século XVI que ela se cantou no coração do povo.
Cantamos nós o mistério que celebramos, no coração das nossas assembleias
litúrgicas? É este o sentido do canto litúrgico, do canto da missa. A mensagem
do evangelho e a páscoa do Senhor penetram no coração, sobretudo de pessoas que
não estão acostumadas a uma vida propriamente intelectual, muito mais
facilmente através do canto do que pela palavra proclamada e mesmo bem
interpretada.
Evidentemente
devemos dar preferência aos cânticos que Deus mesmo, através da Bíblia, colocou
em nossa boca: os salmos e os outros cânticos bíblicos. Em geral, os cânticos
da missa deveriam sempre ter, de um lado, pelo menos inspiração bíblica, e de
outro, deveriam espelhar a vida da assembleia, a páscoa que o povo de Deus e o
mundo vivem no seu dia a dia e na sua história, em união com a páscoa do
Senhor.
Já
que a missa não é uma devoção particular de cada um que a ela, talvez somente
assiste, os cânticos devem ter caráter comunitário. Critério para distinguir
cânticos devocionais subjetivos dos que são autenticamente litúrgicos é a
dimensão comunitária. Mesmo quando a pessoa que canta expressa gramaticalmente
pela 1a pessoa do singular, o “eu” de um cântico pode ser também, como é frequentemente
o caso dos salmos, expressão de um “eu” coletivo. Eu posso estar diante de Deus
e me dirigir a ele também em nome dos meus irmãos e irmãs do mundo inteiro.
É
deformação da missa também quando não se canta. A própria instrução Geral do
Missal Romano supõe que haja canto na missa com a participação do povo e até
observa que a aclamação ao evangelho com o aleluia pode ser omitida quando não
é cantada (cf.n.63). Também o Santo e os outros cantos fixos da missa perdem
muito quando não são cantados, mas apenas recitados. Não se exclui que, por
exemplo, o “Glória” seja recitado, mas devemos lembrar que normalmente um hino
deve ser cantado. Ideal seria que estas partes da missa fossem sempre cantadas;
tão pouco deveriam faltar cânticos de entrada e de comunhão.
c) Missa-festa
As
considerações sobre o canto na missa nos levam a pensar no caráter festivo da
celebração eucarística. É de fato, antes de mais nada, o canto que contribui
para que a missa seja uma celebração festiva. Não se pode imaginar festa sem
música e canto.
Como
já vimos, a música instrumental deve estar a serviço do canto, e este, por sua
vez, deve ser tal que leve a assembleia a mergulhar no mistério. Se ele falta,
a missa facilmente se reduz a uma sequência de discursos. Discurso da parte de
Deus é a proclamação da palavra, discurso da parte da assembleia é a oração.
Tornou-se ainda bastante geral o costume de inúmeros outros pequenos discursos,
antes, durante e depois da missa, que o comentarista ou o assim chamado
animador faz. Mais prejudicial para o caráter festivo da missa é ainda se toda
a assembleia acompanha a proclamação da palavra de Deus, os comentários e as
orações, lendo-as no folheto, ao mesmo tempo em que são proferidos em voz alta.
Pode-se fazer a pergunta: Em que festa se distribui impresso tudo que se fala,
e que nenhum dos participantes da festa tenha a possibilidade de falar uma
palavra espontânea?
O
caráter festivo da missa se prejudica com freqüência também de outras maneiras.
Em que festa de família ou de um grupo de pessoas amigas os convidados são
obrigados a ficar durante toda a celebração em filas ou blocos de bancos ou
cadeiras, onde não se podem mexer nem olhar um para o outro ou conversar? Já a
colocação dos lugares dos fiéis de uma maneira que uns possam ver os outros,
por exemplo, em forma circular ou de elipse ajuda a se encontrar, ao menos
pelos olhares. Contribui para a festividade da missa, evidentemente, também o
ambiente e o espaço em que se celebra, a ornamentação dos principais lugares em
que se realiza a celebração, como o altar, o ambão ou a fonte batismal.
Quem
participa de uma festa o faz normalmente com todo o seu ser, com corpo e alma,
com todos os seus sentidos. A liturgia se presta, já que é uma ação ritual e
festiva, perfeitamente para tal engajamento. Quantas vezes, no entanto, e de
quantas maneiras nossas assim chamadas celebrações são eventos apenas
cerebrais, no pior dos casos leitura em comum de folhetos? Do outro lado, onde
se procura e promove uma participação festiva e da pessoa toda com todas a suas
faculdades, tal participação não fica facilmente apenas externa, sem ser
expressão daquilo que se celebra? Na missa o rito exprime o mistério de Cristo
e nele nos introduz. É claro que se supõe na liturgia sempre a fé, a fé dos
celebrantes, a fé no Senhor Jesus que está no meio da assembleia, que a reuniu,
que lhe fala e lhe presta ouvido, que prepara a mesa da eucaristia para levar
os convivas à mais íntima comunhão consigo e entre si. A celebração da páscoa
do Senhor, e ao mesmo tempo da nossa salvação, é realmente motivo de alegria,
de louvar e agradecer o Senhor com todo o nosso ser. Na missa temos todos os
elementos rituais e as melhores condições para uma celebração festiva do
mistério de Cristo, da sua páscoa e da nossa. Que pena se dela fazemos uma
reunião tipo aula escolar ou de conscientização, ou, em outro extremo, um show!
Infelizmente não é raro que se peque por coisas em um ou outro extremo.
d) A estrutura da missa
A
missa tem uma estrutura que lhe foi dada pelo próprio Senhor Jesus, na
instituição da eucaristia, na última Ceia, quando ele, como ouvimos em cada
missa, tomou o pão, deu graças, partiu o pão e o deu, e quando depois fez o
mesmo com o cálice. No quadro da última Ceia houve também uma liturgia da
palavra, o relato da libertação do povo hebreu do Egito, e a resposta a este
relato pelo canto de salmos e através da ação de graças sobre o pão e o vinho,
para não falar do discurso de despedida que o quarto evangelho relata. O rito
da missa nos orienta precisamente neste sentido. Os cristãos da época
apostólica e dos primeiros séculos se ativeram fielmente à estrutura originária
da missa, como nos mostram, além de alguns textos do novo Testamento,
documentos do segundo e terceiro séculos.
Quando
se formaram, nos séculos seguintes, as famílias litúrgicas com seus próprios
ritos, em cada um destes diversos ritos que surgiram, a mesma eucaristia se
celebrava, e se celebra ainda hoje, de modo um tanto diferente, conforme a
índole de cada povo, e evidentemente na língua própria. Assim teve origem
também o rito romano que encontrou sua forma clássica nos séculos quinto e
sexto. Nele acrescentaram-se ainda, nos séculos seguintes, outros elementos
rituais que em parte ofuscaram a estrutura originária da missa. Quase todos
estes elementos foram abolidos pela reforma litúrgica, desencadeada pelo
Concílio Vaticano II, de modo que a estrutura essencial da missa, e seus
elementos importantes, ficaram mais destacados, o que possibilita e facilita a
celebração consciente e frutuosa da eucaristia.
A
parte inicial da missa mereceu grande atenção na elaboração do atual rito da
missa. Ela ficou muito rica nos seus elementos rituais. E precisamente estes
ritos iniciais prestam-se à adaptação e à criatividade das comunidades
celebrantes. Ora, muitas vezes, sobrecarrega-se ainda mais esta parte da missa,
esquecendo-se que é apenas a abertura da celebração eucarística com suas duas
grandes partes: a liturgia da palavra e a liturgia eucarística. Raramente se
lembra a recomendação dada para missas mais simples e sobretudo as missas com
crianças, de omitir, às vezes, um ou outro elemento destes ritos iniciais,
precisamente para não dar demais peso a eles.
Na
liturgia da palavra as introduções às leituras são frequentemente comentários
que antecipam aquilo que a leitura vai dizer. Se nós já dizemos de antemão o
que Deus vai falar e como devemos entender, a rigor nem precisamos mais
proclamar a palavra de Deus; o comentarista já deu a mensagem. Às vezes, uma
introdução, contextualizando uma leitura, pode ser oportuna, mas os comentários
sobre ela se fazem na homilia. A homilia, por sua vez, em muitos casos é antes
palavra de quem faz a explicação da palavra de Deus dentro da realidade em que
vivemos.
Da
liturgia eucarística, a primeira parte, a preparação das oferendas, se capricha
mais e chama mais a atenção do que as outras, que são mais importantes, já
porque a primeira apenas prepara as seguintes. E quem diria que a oração
eucarística é sempre proferida como Jesus rezou na última Ceia, as bênçãos
sobre o pão e o vinho? A fração do pão que deu, no novo testamento, o nome à
eucaristia, além do nome “Ceia do Senhor”, geralmente nem se nota. Sem sentido
é, também, o gesto de partir hóstia grande ao pronunciar, na narrativa da
instituição da eucaristia, as palavras “partiu o pão”. A aclamação ao Cordeiro
de Deus, que acompanha a fração do pão depois da oração eucarística, às vezes,
parece ter só o sentido de ser o sinal de parar com a saudação da paz.
Esta
saudação da paz é sem dúvida para muitos participantes das nossas missas o
momento mais interessante da liturgia eucarística, que impressiona mais do que
qualquer outro. Mas tem ela o sentido de celebrar aquela paz que o Cristo
pascal, o celebrante por excelência da eucaristia nos dá, como a deu na tarde
do dia da ressurreição aos apóstolos, como fruto de sua morte e ressurreição?
Entendemos esta saudação como sinal de reconciliação entre nós e todos os
cristãos, antes de participarmos na mesa da comunhão eucarística do único pão e
do mesmo cálice, como membros do único corpo místico de Cristo? Ou é apenas um
gesto de confraternização?
A
oração pela paz é em si uma oração muito oportuna, mas não foi sem motivo que a
comissão pós-conciliar para a reforma do rito da missa a quis cancelar, porque
ela não se integra bem na estrutura da missa como Ceia do Senhor. Depois da
oração eucarística, que é a bênção da mesa, deveria se proceder ao comer e
beber e não enxertar ainda várias orações, por mais bonitas e oportunas que
sejam. O pai nosso não quebra o ritmo da estrutura da missa como refeição, pois
pode ser considerado como uma pequena oração eucarística ou bênção da mesa;
nele pedimos o pão nosso de cada dia, que é também a eucaristia. Mas não se justifica
do mesmo modo a oração ”Livrai-nos...” depois do Pai nosso e a oração pela paz.
Ora, dar ainda mais relevo à oração pela paz, como acontece quando ela é rezada
em comum por toda a assembleia, significa uma ruptura na estrutura da missa que
não pode justificar.
A
mesma atenção que acabamos de dar à estrutura da missa, poderíamos dar às
outras dimensões da celebração eucarística, por exemplo, a de reunião ou de
encontro ou de presença ou de sacrifício, ou de memória e páscoa. Mas isso
excederia o quadro deste artigo. No entanto, um exemplo seja ainda dado para
mostrar como tais análises podem ser oportunas para se chegar a evitar abusos.
Se analisássemos a missa como memorial da obra redentora de Cristo com seu
ponto culminante na morte e ressurreição do Senhor, ficaria bem claro que não
se pode tolerar o costume de cantar depois da narrativa da instituição da
eucaristia um canto de adoração ao Santíssimo Sacramento, muito menos uma
procissão com a hóstia consagrada pela igreja, substituindo assim ou pelo menos
ofuscando a dimensão memorial explícita que se exige na resposta da assembleia
ao Eis o mistério da fé e se exprime também logo em seguida na própria oração
eucarística. O missal não desconhece a adoração. Lembremos só o Glória e os
inícios das orações eucarísticas, sobretudo da quarta oração, na qual rezamos:
Vós sois o Deus vivo e verdadeiro que existis antes de todo o tempo e
permaneceis para sempre, habitando em luz inacessível. Também não falta
expressão de adoração do Senhor nas espécies do pão e do vinho, pois quem
preside a missa faz uma genuflexão quando mostra, depois das palavras de Jesus
sobre o pão e o vinho, o corpo de Cristo e o cálice com o sangue do Senhor,
igualmente antes da comunhão. Mas este gesto da genuflexão, como eventualmente,
ao mesmo tempo, o da inclinação profunda de todos os participantes da missa,
são tão sóbrios que não prejudicam a dimensão memorial da eucaristia. Para
ulterior adoração do Senhor presente no pão consagrado e oração diante do
sacrário, que são muito recomendáveis, há lugar e tempo depois e em geral fora
da missa.
4. Resumo da história da celebração
eucarística
Nas
considerações que acabamos de fazer sobre a atual situação da celebração
eucarística no Brasil já nos referimos, muitas vezes, à história da missa, mas
estes acenos não me parecem dispensar a apresentação de um breve resumo desta
história, que certamente nos ajudará a compreender melhor como se chegou à
situação atual com suas deformações. Lembrarei apenas fases desta história que
eram relevantes na evolução que levou à prática celebra-tiva atual.
Jesus
instituiu a eucaristia na forma ritual de refeição. Ele a celebrou dentro de
uma ceia festiva, mas o rito da própria eucaristia se separou, parece, já no 1o
século, de uma refeição comunitária de confraternização ou ágape, que se faz
para matar a fome do corpo. Conseqüência desta separação foi que a própria Ceia
do Senhor se reduziu a uma refeição ritual com um pouco de pão e um pouco de
vinho. Desta maneira a consciência da eucaristia como refeição entrou em
segundo plano, ao passo que a partir do 2o século esta celebração geralmente
foi chamada de eucaristia. Isso mostra que se viu nela, em primeiro lugar uma
ação verbal e não mais uma refeição, sem, no entanto, se perder a estrutura
básica da refeição. Mais tarde entrou em primeiro plano a dimensão de
sacrifício e, na idade média, de presença de Jesus no pão consagrado. Este
processo de esquecimento da dimensão da eucaristia como refeição foi reforçado
pela redução do pão eucarístico a pão ázimo que, sobretudo na forma das
pequenas partículas brancas, como as temos hoje dificilmente pode ser
reconhecido como verdadeiro pão. Além disso, chegou-se a proibir aos fiéis a
comunhão do sangue de Cristo. O resultado desta evolução, na qual entraram ainda
alguns outros fatores, como por exemplo a impossibilidade de uma ativa
participação dos fiéis na celebração eucarística, que se realizava em latim, o
que eles não entendiam, levou finalmente a compreender como eucaristia a hóstia
consagrada, e a participação consistia, sobretudo no ver e adorar a hóstia. A
eucaristia tinha se tornado uma devoção.
Contra
esta evolução reagiram os reformadores protestantes do século XVI, mas não
apenas com críticas objetivas e construtivas. Por isso o Concílio de Trento se
viu obrigado a defender contra eles a fé eucarística da idade média, que em
muitas expressões teológico-litúrgicas e celebrativas, infelizmente não era
mais em tudo fiel à instituição de Jesus e à autêntica tradição apostólica.
Pelo menos, muitos acentos, como vimos, foram deslocados. No entanto, a
doutrina do Concílio de Trento orientou nos séculos seguintes, além da teologia
e da liturgia, também os catecismos e toda a espiritualidade eucarística.
O
movimento litúrgico do século XX, com seu coroamento no Concílio Vaticano II, e
a reforma litúrgica pós-conciliar significaram realmente uma volta às fontes,
mas infelizmente o espírito do concílio e da eucaristia não foram, nem de
longe, compreendidos por todos os católicos. Observa-se, até recentemente, uma
recaída mais forte no espírito em que se via e se celebrava a eucaristia antes
do Vaticano II. A esta falta de compreensão da teologia do Vaticano II e a
conseqüente inobservância das orientações práticas do magistério devem-se às
deformações e os abusos que hoje se constatam na celebração da eucaristia.
Antes de mais nada, seria necessária uma teologia litúrgica da eucaristia que
se baseia na bíblia e na tradição autêntica, mas nem mesmo na maioria dos
institutos teológicos, onde se forma, sobretudo o clero, tal teologia
eucarística é ensinada e por isso em geral também não é transmitida aos leigos,
particularmente aos agentes da pastoral litúrgica.
Como
acabamos de fazer um apanhado resumido da história da eucaristia, seria
oportuno apresentar também a sua teologia, mas, mesmo um resumo da teologia de
uma realidade tão rica como é a eucaristia, se quer ser válido, extrapolaria o
quadro deste artigo na Revista de Liturgia. Não se esqueça, no entanto, que
muitos elementos teológicos importantes já foram apresentados ao longo da
análise da prática celebrativa atual da eucaristia.
5. Livros litúrgicos e documentos do
magistério
Por
não ter apresentado neste artigo um resumo da teologia da eucaristia, parece
ainda mais indispensável uma referência aos livros litúrgicos e uma indicação
dos documentos do magistério que dão todas as orientações necessárias e úteis
para uma autêntica celebração da eucaristia.
A
orientação básica nos é dada pelos livros litúrgicos. Aqueles que dizem
respeito à eucaristia são, em primeiro lugar, o missal e os lecionários da
missa e ainda o ritual para a sagrada comunhão e o culto eucarístico fora da
missa. Também outros livros litúrgicos, sobretudo aqueles dos sacramentos que
se celebram sempre ou opcionalmente dentro da missa, se referem à eucaristia,
como o Pontifical Romano com respeito à confirmação e às ordenações, a bênção
de abade e abadessa, a consagração das virgens, a profissão religiosa, a
dedicação e bênção de igreja e altar, o ritual de iniciação cristã de adultos,
o ritual do matrimônio, o ritual da unção dos enfermos e sua assistência
pastoral, este particularmente com o rito da visita e comunhão aos enfermos e o
viático, também o ritual de exéquias. Todos estes rituais trazem uma introdução
que geralmente lembra primeiro a teologia da respectiva celebração e dá em
seguida as orientações necessárias para sua realização. Entre todas estas introduções,
merece grande destaque a Instrução Geral do Missal Romano, da qual temos desde
2002 uma nova edição.
Sobre
a eucaristia temos ainda numerosos outros documentos dos papas e da Sé
apostólica, também da CNBB e de várias dioceses. Particularmente importante é
para nós no Brasil a segunda parte do documento 43 da CNBB: Animação da vida
litúrgica no Brasil, que dá orientações pastorais sobre a celebração
eucarística. As cinco instruções da Sé apostólica para uma correta aplicação da
constituição do Concílio Vaticano II sobre a liturgia tratam da liturgia em
geral, mas em muitas partes também explicitamente da eucaristia.
Os
papas dedicaram vários de seus escritos à eucaristia: Paulo VI, a encíclica
Mysterium fidei (Mistério da fé) e João Paulo II, a encíclica Ecclesia de
eucaristia [A Igreja (vive) da eucaristia] e a carta apostólica Mane nobiscum
domine (Ficai conosco, Senhor). A mais recente instrução Sacramentum
redemptionis (O sacramento da redenção), que tem o subtítulo “Sobre alguns
aspectos que se deve observar e evitar acerca da santíssima eucaristia”, é um
prolongamento disciplinar da encíclica Ecclesia de eucaristia, que tem um cunho
mais teológico e espiritual. Esta última instrução provocou, parece, por toda
parte do mundo católico, reações de decepção. De fato, ela pode dar a impressão
de ser um elenco de abusos na celebração da eucaristia que se registraram pelo
mundo afora e que a Sé apostólica procura corrigir. A intenção do documento é
clara: favorecer da melhor maneira possível o bem espiritual das comunidades
que celebram a eucaristia. Certamente ele teria sido melhor acolhido se sua
linguagem fosse mais pedagógica e cativante. Em todo caso, esta instrução não
introduz novas restrições à liberdade que os livros litúrgicos e os documentos
anteriores deram na maneira de celebrar, a não ser em pouquíssimos detalhes de
menor importância. Em geral lembra as normas e orientações que se encontram já
nos documentos anteriores e aponta para abusos que realmente deveriam ser
evitados e corrigidos. Sem menosprezar este e outros dos documentos mais
recentes, não hesito em recomendar que se procure a orientação para a
celebração da eucaristia, sobretudo na Instrução Geral do Missal Romano de
2002.
6. Propostas de ação
A
prática celebrativa da eucaristia deve se orientar basicamente, e em primeiro
lugar, pela instituição de Jesus. Devemos, portanto, fazer aquilo que ele fez e
mandou fazer em memória dele. Confrontando nossa prática celebrativa atual com
a herança autêntica de Jesus Cristo, podemos detectar as deformações indevidas
e encontrar pistas para as correções e melhorias necessárias. Em outras
palavras: já que tratamos da prática celebrativa, portanto, do lado ritual ou
externo da celebração eucarística, não há dúvidas que na procura de propostas
para a ação devemos nos orientar, sobretudo na estrutura da missa, que é a de
uma refeição. Não devemos nos esquecer das dimensões mais internas da
eucaristia que se espelham no rito, mas direta e imediatamente devemos ter em
vista o rito e sua autenticidade.
A
própria dimensão de ceia poderia se manifestar sem grandes dificuldades muito
melhor do que é geralmente o caso. Por exemplo: poderíamos, deveríamos usar
para a celebração da eucaristia pão que de fato parece ser pão. Dentro das
prescrições do missal, as hóstias podem ser maiores, mais grossas, de farinha
não tão refinada que nem tem mais a cor de pão. Também para os fiéis as hóstias
podem ser grandes, de modo que sejam partidas. A comunhão sob as duas espécies
pode ser bem mais frequente do que é na realidade. As orientações da CNBB que
se encontram no Diretório litúrgico, a permitem praticamente sempre. Se
levássemos a sério a ordem do Senhor: Tomai e comei... e tomai e bebei... e o
significado da comunhão sob as duas espé-cies, não hesitaríamos mais em
praticá-la, pelo menos muito mais frequentemente. Mesmo o ideal de um número
maior de pessoas tomar o Sangue de Cristo de um único cálice, não encontra da
parte dos fiéis receio; em todo caso, nunca o notei em minhas comunidades. Pelo
contrário, com a devida preparação dos fiéis eles se encantam com esta maneira
de comungar.
Fácil
é também tornar as nossas missas mais festivas, menos monótonas e enfadonhas,
menos verbosas e cerebrais, sem deslizar em celebrações tipo show. Se os
instrumentos sustentam o canto e se este já pela sua letra exprime o mistério
que se celebra, também quando em certos momentos somente o toque de
instrumentos cria clima de oração e de alegria profunda, música e canto exercem
realmente o seu ministério a serviço da liturgia e da comunidade celebrante.
Assim, a celebração se torna ainda mais prenhe do mistério de Cristo, da páscoa
dele e do povo. Para facilitar tal participação plena e frutuosa de toda a assembleia
litúrgica em clima festivo seria também importante não usar os costumeiros
folhetos que impedem uma comunicação plena entre os ministros, sobretudo os que
proclamam a palavra de Deus, e a assembleia. A comunicação não deve se reduzir
à dimensão acústica; é a pessoa toda, também com sua postura e expressão de
rosto, com seu olhar e seus gestos que se comunica. Não se justificam os
folhetos com o argumento que os leitores e, é verdade, frequentemente também os
ministros ordenados, não se comunicam; eles devem ser formados para isso. Onde
se vê numa festa que tudo aquilo que será falado se apresenta em folheto?
Seria
bom se pudéssemos também para o canto dispensar qualquer subsídio impresso, mas
um livro de canto que se toma nas mãos somente quando a assembleia canta,
prejudica relativamente pouco. Ao contrário dos folhetos, o bom livro de canto
tem a grande vantagem de possibilitar a escolha de cânticos que não somente
exprimem aquilo que se celebra, mas corresponda também ao gosto e a capacidade
da assembleia que vai cantar. É claro que tal livro deve conter cânticos litúrgicos,
que cantam o mistério de Cristo e a vida da comunidade, de acordo com todo o
ano litúrgico, e não apenas cânticos quaisquer de confraternização ou de luta
social ou também intimistas e subjetivistas que não falam do mistério que se
celebra.
Mais
ainda do que o elenco das deformações em nossas celebrações da eucaristia
poderia ser prolongado o elenco das sugestões para corrigi-las, mas muitas
propostas já foram feitas direta ou indiretamente quando analisamos as
deformações. Também seria impossível aqui pretender ser completo e dar todas as
sugestões possíveis. Todas as propostas a serem feitas encontram-se nos livros
litúrgicos e em documentos do magistério.
Uma
sugestão, porém, seja ainda dada aqui. É até mais do que uma sugestão, é um
chamado de atenção a uma necessidade urgente e de capital importância: Devemos
incrementar a formação de nossas comunidades e de seus ministros leigos e
ordenados. Só assim será possível realizar a grande tarefa que é vital para
nossas comunidades, para a Igreja e para o mundo, que a eucaristia, o coração
de tudo, seja celebrada como aquela Ceia que o Senhor nos deixou em sua
memória. Mas não é apenas a formação litúrgica que falta, falta formação humana
e cristã em geral e especialmente para os ministros ordenados uma formação
teológico-litúrgica sólida. São poucas as famílias que colocam nos seus filhos
os fundamentos para uma vida de fé que dê a eles condições para poderem
celebrar esta fé. A catequese, particularmente aquela que é chamada de primeira
comunhão, geralmente não é uma verdadeira iniciação à eucaristia. Deficiente é,
muitas vezes, também a formação litúrgica dos membros das equipes de liturgia e
dos ministros leigos, inclusive dos que ajudam na distribuição da comunhão. E
mesmo a formação litúrgica do clero nos institutos de teologia e nos seminários
deixa a desejar.
Conclusão
Nestas
páginas se tocou em muitos problemas. Nem todos são da mesma importância.
Grande parte destes problemas se pode solucionar com facilidade. Em geral se
exige uma melhor formação dos que celebram a eucaristia, sobretudo dos
ministros. Considerando o conjunto das deformações em nossas celebrações
eucarísticas e as consequências nefastas que causam em nossas comunidades, na
Igreja e no mundo, devemos estar profundamente preocupados e procurar melhorar
a situação com urgência e com todas as nossas forças, fazendo de imediato o que
dá para fazer para corrigir os erros, mas também, e isso parece ser ainda mais
importante, investir na formação humana, cristã e teológico-litúrgica de nós
mesmos, de nossas comunidades e dos seus agentes, sobretudo dos que presidem as
celebrações eucarísticas.
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Pe.
Gregório Lutz é doutor em liturgia, professor e coordenador do Centro de
Liturgia da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção em São Paulo.