sábado, 31 de janeiro de 2015

São João Bosco (Dom Bosco)

Das Cartas de São João Bosco, presbítero




Sempre trabalhei com amor

Antes de mais nada, se queremos ser amigos do verdadeiro bem de nossos alunos e levá-los ao cumprimento de seus deveres, é indispensável jamais vos esquecerdes de que representais os pais desta querida juventude. Ela foi sempre o terno objeto dos meus trabalhos, dos meus estudos e do meu ministério sacerdotal; não apenas meu, mas da cara congregação salesiana.

Quantas vezes, meus filhinhos, no decurso de toda a minha vida, tive de me convencer desta grande verdade! É mais fácil encolerizar-se do que ter paciência, ameaçar uma criança do que persuadi-la. Direi mesmo que é mais cômodo, para nossa impaciência e nossa soberba, castigar os que resistem do que corrigi-los, suportando-os com firmeza e suavidade.

Tomai cuidado para que ninguém vos julgue dominados por um ímpeto de violenta indignação. É muito difícil, quando se castiga, conservar aquela calma tão necessária para afastar qualquer dúvida de que agimos para demonstrar a nossa autoridade ou descarregar o próprio mau humor. Consideremos como nossos filhos aqueles sobre os quais exercemos certo poder. Ponhamo-nos a seu serviço, assim como Jesus, que veio para obedecer e não para dar ordens; envergonhemo-nos de tudo o que nos possa dar aparência de dominadores; e se algum domínio exercemos sobre eles, é para melhor servirmos.

Assim procedia Jesus com seus apóstolos; tolerava-os na sua ignorância e rudeza, e até mesmo na sua pouca fidelidade. A afeição e a familiaridade com que tratava os pecadores eram tais que em alguns causava espanto, em outros escândalo, mas em muitos infundia a esperança de receber o perdão de Deus. Por isso nos ordenou que aprendêssemos dele a ser mansos e humildes de coração.

Uma vez que são nossos filhos, afastemos toda cólera quando devemos corrigir-lhes as faltas ou, pelo menos, a moderemos de tal modo que pareça totalmente dominada.

Nada de agitação de ânimo, nada de desprezo no olhar, nada de injúrias nos lábios; então sereis verdadeiros pais e conseguireis uma verdadeira correção.


Em determinados momentos muito graves, vale mais uma recomendação a Deus, um ato de humildade perante ele, do que uma tempestade de palavras que só fazem mal a quem as ouve e não têm proveito algum para quem as merece.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A reforma do Ano Litúrgico a partir do Concílio Vaticano II (parte IX)

Conclusão

A Constituição Sacrosanctum Concilium ao pretender uma reforma geral da liturgia, não podia deixar de dar especial atenção ao ano litúrgico. Se nossa participação na liturgia consiste em penetrar no mistério do Senhor que é celebrado na liturgia, o ano litúrgico possui uma força pedagógica que nos faz adentrar passo a passo na história da salvação, e de modo particular no mistério pascal de Cristo.

Superando todo desvio de eixo que veio interferindo na celebração do ano litúrgico ao longo dos séculos, o Concílio Vaticano II devolveu a centralidade do mistério pascal de Cristo no ano litúrgico, reconduzindo a celebração dos santos e até mesmo da Virgem Maria em sua real relação com o mistério pascal. O próprio do tempo, ou seja, o mistério do Senhor, tem a prioridade sobre todas as demais festas do ano litúrgico. Também os exercícios de piedade devem estar em harmonia com os tempos litúrgicos, nos fazendo viver melhor o mistério celebrado.

Que procuremos valorizar ainda mais o ano litúrgico com seus tempos próprios, de modo que, possamos participar de maneira plena, consciente e frutuosa de nossa liturgia.




quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A Eucaristia:
teologia e prática diante das deformações atuais

Pe. Gregório Lutz


1. Introdução

Se quisermos recordar a teologia da Eucaristia e analisar a sua prática celebrativa diante das deformações atuais, nada parece mais conveniente do que partir da maneira de como celebramos a missa hoje em dia. Além de constatar esta situação, devemos analisá-la, e para isso devemos ter diante dos olhos a origem e a história da eucaristia, assim como a sua teologia, para compreendermos a situação atual e em que consistem eventuais deformações. 

Além da história e da teologia, devemos ter presentes os livros litúrgicos pós-conciliares com suas introduções e os documentos conciliares e pós-conciliares sobre a eucaristia. Assim teremos os critérios para julgar a situação atual e para dar sugestões que poderão ajudar a corrigir deformações que hoje se observam, e para celebrar a eucaristia com maior fidelidade a exemplo e conforme a ordem que Jesus nos deu na última ceia. No ver e nas pistas para um agir, este estudo se limitará à prática celebrativa no Brasil.

2. A pluralidade dos jeitos de celebrar e a unidade substancial do rito

Quem já participou de celebrações eucarísticas fora do Brasil sabe por experiência pessoal, e muitos outros sabem por terem ouvido ou lido, que no Brasil celebramos a liturgia e, particularmente a missa, de uma maneira diferente do modo de celebrar na Europa e em outros continentes, também dos países vizinhos na América Latina. Além disso, dentro do Brasil celebra-se a missa, embora quase sempre de um jeito mais ou menos brasileiro, de maneiras diferentes, por exemplo: nos centros das grandes cidades ou em suas periferias ou no campo, nas diversas regiões do Brasil e conforme as características de origem étnica da maioria que compõem as assembleias litúrgicas.

Nas celebrações eucarísticas dos movimentos eclesiais espelham-se, às vezes, fortemente o espírito e as orientações que vêm de fora do Brasil, sobretudo dos países de origem desses movimentos. Evidentemente, celebra-se de modo diferente também com crianças, jovens e idosos e em cada comunidade eclesial. Embora haja ainda, diante desta pluralidade dos modos de celebrar, pessoas com saudades dos tempos idos em que a missa era celebrada, até nos menores detalhes, de modo idêntico em todas as igrejas, em todas as partes do mundo, em geral se aceita e se aprecia a superação da uniformidade e do fixismo que dominaram, sobretudo depois do Concílio de Trento. O Concílio Vaticano II sancionou esta liberdade na maneira de celebrar, tão desejada pelo movimento litúrgico, e incentivou adaptações e até verdadeira inculturação da liturgia.

Lemos, por exemplo, no documento do Concílio Vaticano II sobre a liturgia, Sacrosanctum Concilium: “A liturgia consta de uma parte imutável, divinamente instituída, e de partes suscetíveis de mudança” (SC 21); “A Igreja não deseja impor na liturgia uma forma rígida e única para aquelas coisas que não dizem respeito à fé ou ao bem de toda a comunidade” (SC 37); “Salva a unidade substancial do rito romano, se dê lugar a legítimas variações e adaptações para os diversos grupos, regiões e povos” (SC 38). Portanto, conforme o Vaticano II, é plenamente legítimo que no Brasil se celebre a missa de modo diferente da maneira de celebrar em outros países e continentes, e que dentro do Brasil haja diferenças no jeito de celebrar, conforme as regiões, comunidades e grupos, à condição que seja sempre a celebração da eucaristia como a herdamos de Jesus Cristo e observando o que é substancial no rito da missa e, portanto, não sujeito a adaptações e variações.

3. Constatação e análise de deformações

Depois de termos lembrado a legitimidade de diferenças na celebração da eucaristia, de lugar para lugar, de comunidade para comunidade, de grupo para grupo naquilo que não é invariável, podemos agora elencar deformações na prática celebrativa da eucaristia que se observam no Brasil.

a) Missas-Show

Chamam a atenção, em primeiro lugar, as assim chamadas missas-show. Não só aquelas missas com participação de dezenas e centenas de milhares de pessoas, que frequentemente são também transmitidas pela televisão; podem ser igualmente as missas dominicais em nossas paróquias e comunidades, nas quais, sobretudo os instrumentistas e um grupo de cantores, talvez também quem preside e os outros ministros, se sintam e se apresentem como num palco de teatro ou mesmo como num show, de modo que a assembleia preste muito mais atenção aos que estão no palco do que ao mistério que se supõe estar sendo celebrado. A música sobrepõe-se nestas missas de tal modo à palavra cantada, que esta não mais se entende, que só se vibra com a música, talvez com todo o corpo e que se chegue, às vezes, quase a um estado de transe. A proclamação da palavra se torna facilmente secundária e o seu conteúdo nem parece interessar. A resposta da comunidade no canto não é adesão à palavra proclamada ou o mergulho no mistério que se celebra. A oração eucarística ou outras orações são sentidas, talvez, como momento de descansar ou de espera vazia até a próxima música.

b) O canto na missa

O canto litúrgico não cumpre sua função quando é abafado pelos instrumentos, e menos ainda quando não condiz com o mistério celebrado. Acontece que os cânticos não são escolhidos em consonância com a festa ou o tempo litúrgico ou o momento ritual. Às vezes, eles não exprimem o mistério de Cristo e não conduzem para dentro dele. Canta-se no início da missa um cântico que não é de entrada, e assim outros que não condizem com a respectiva parte da missa. O que se canta, às vezes, como canto do Glória ou do Santo? Raramente se segue a tradição antiga e muito recomendável que o canto de comunhão retome o evangelho; embora não se possa reprovar, neste momento, um canto propriamente de comunhão. Imperdoável é quando depois da narrativa da instituição da eucaristia, em lugar da resposta prevista ao Eis o mistério da fé se entoa um canto de adoração ao santíssimo sacramento. Assim, se esconde à assembleia o que a missa tem de mais próprio e essencial: Ser celebração da memória da morte e ressurreição do Senhor, como Jesus mesmo mandou.

Diz-se da reforma protestante do século XVI que ela se cantou no coração do povo. Cantamos nós o mistério que celebramos, no coração das nossas assembleias litúrgicas? É este o sentido do canto litúrgico, do canto da missa. A mensagem do evangelho e a páscoa do Senhor penetram no coração, sobretudo de pessoas que não estão acostumadas a uma vida propriamente intelectual, muito mais facilmente através do canto do que pela palavra proclamada e mesmo bem interpretada.

Evidentemente devemos dar preferência aos cânticos que Deus mesmo, através da Bíblia, colocou em nossa boca: os salmos e os outros cânticos bíblicos. Em geral, os cânticos da missa deveriam sempre ter, de um lado, pelo menos inspiração bíblica, e de outro, deveriam espelhar a vida da assembleia, a páscoa que o povo de Deus e o mundo vivem no seu dia a dia e na sua história, em união com a páscoa do Senhor.
Já que a missa não é uma devoção particular de cada um que a ela, talvez somente assiste, os cânticos devem ter caráter comunitário. Critério para distinguir cânticos devocionais subjetivos dos que são autenticamente litúrgicos é a dimensão comunitária. Mesmo quando a pessoa que canta expressa gramaticalmente pela 1a pessoa do singular, o “eu” de um cântico pode ser também, como é frequentemente o caso dos salmos, expressão de um “eu” coletivo. Eu posso estar diante de Deus e me dirigir a ele também em nome dos meus irmãos e irmãs do mundo inteiro.

É deformação da missa também quando não se canta. A própria instrução Geral do Missal Romano supõe que haja canto na missa com a participação do povo e até observa que a aclamação ao evangelho com o aleluia pode ser omitida quando não é cantada (cf.n.63). Também o Santo e os outros cantos fixos da missa perdem muito quando não são cantados, mas apenas recitados. Não se exclui que, por exemplo, o “Glória” seja recitado, mas devemos lembrar que normalmente um hino deve ser cantado. Ideal seria que estas partes da missa fossem sempre cantadas; tão pouco deveriam faltar cânticos de entrada e de comunhão.

c) Missa-festa

As considerações sobre o canto na missa nos levam a pensar no caráter festivo da celebração eucarística. É de fato, antes de mais nada, o canto que contribui para que a missa seja uma celebração festiva. Não se pode imaginar festa sem música e canto.

Como já vimos, a música instrumental deve estar a serviço do canto, e este, por sua vez, deve ser tal que leve a assembleia a mergulhar no mistério. Se ele falta, a missa facilmente se reduz a uma sequência de discursos. Discurso da parte de Deus é a proclamação da palavra, discurso da parte da assembleia é a oração. Tornou-se ainda bastante geral o costume de inúmeros outros pequenos discursos, antes, durante e depois da missa, que o comentarista ou o assim chamado animador faz. Mais prejudicial para o caráter festivo da missa é ainda se toda a assembleia acompanha a proclamação da palavra de Deus, os comentários e as orações, lendo-as no folheto, ao mesmo tempo em que são proferidos em voz alta. Pode-se fazer a pergunta: Em que festa se distribui impresso tudo que se fala, e que nenhum dos participantes da festa tenha a possibilidade de falar uma palavra espontânea?

O caráter festivo da missa se prejudica com freqüência também de outras maneiras. Em que festa de família ou de um grupo de pessoas amigas os convidados são obrigados a ficar durante toda a celebração em filas ou blocos de bancos ou cadeiras, onde não se podem mexer nem olhar um para o outro ou conversar? Já a colocação dos lugares dos fiéis de uma maneira que uns possam ver os outros, por exemplo, em forma circular ou de elipse ajuda a se encontrar, ao menos pelos olhares. Contribui para a festividade da missa, evidentemente, também o ambiente e o espaço em que se celebra, a ornamentação dos principais lugares em que se realiza a celebração, como o altar, o ambão ou a fonte batismal.

Quem participa de uma festa o faz normalmente com todo o seu ser, com corpo e alma, com todos os seus sentidos. A liturgia se presta, já que é uma ação ritual e festiva, perfeitamente para tal engajamento. Quantas vezes, no entanto, e de quantas maneiras nossas assim chamadas celebrações são eventos apenas cerebrais, no pior dos casos leitura em comum de folhetos? Do outro lado, onde se procura e promove uma participação festiva e da pessoa toda com todas a suas faculdades, tal participação não fica facilmente apenas externa, sem ser expressão daquilo que se celebra? Na missa o rito exprime o mistério de Cristo e nele nos introduz. É claro que se supõe na liturgia sempre a fé, a fé dos celebrantes, a fé no Senhor Jesus que está no meio da assembleia, que a reuniu, que lhe fala e lhe presta ouvido, que prepara a mesa da eucaristia para levar os convivas à mais íntima comunhão consigo e entre si. A celebração da páscoa do Senhor, e ao mesmo tempo da nossa salvação, é realmente motivo de alegria, de louvar e agradecer o Senhor com todo o nosso ser. Na missa temos todos os elementos rituais e as melhores condições para uma celebração festiva do mistério de Cristo, da sua páscoa e da nossa. Que pena se dela fazemos uma reunião tipo aula escolar ou de conscientização, ou, em outro extremo, um show! Infelizmente não é raro que se peque por coisas em um ou outro extremo.

d) A estrutura da missa

A missa tem uma estrutura que lhe foi dada pelo próprio Senhor Jesus, na instituição da eucaristia, na última Ceia, quando ele, como ouvimos em cada missa, tomou o pão, deu graças, partiu o pão e o deu, e quando depois fez o mesmo com o cálice. No quadro da última Ceia houve também uma liturgia da palavra, o relato da libertação do povo hebreu do Egito, e a resposta a este relato pelo canto de salmos e através da ação de graças sobre o pão e o vinho, para não falar do discurso de despedida que o quarto evangelho relata. O rito da missa nos orienta precisamente neste sentido. Os cristãos da época apostólica e dos primeiros séculos se ativeram fielmente à estrutura originária da missa, como nos mostram, além de alguns textos do novo Testamento, documentos do segundo e terceiro séculos.

Quando se formaram, nos séculos seguintes, as famílias litúrgicas com seus próprios ritos, em cada um destes diversos ritos que surgiram, a mesma eucaristia se celebrava, e se celebra ainda hoje, de modo um tanto diferente, conforme a índole de cada povo, e evidentemente na língua própria. Assim teve origem também o rito romano que encontrou sua forma clássica nos séculos quinto e sexto. Nele acrescentaram-se ainda, nos séculos seguintes, outros elementos rituais que em parte ofuscaram a estrutura originária da missa. Quase todos estes elementos foram abolidos pela reforma litúrgica, desencadeada pelo Concílio Vaticano II, de modo que a estrutura essencial da missa, e seus elementos importantes, ficaram mais destacados, o que possibilita e facilita a celebração consciente e frutuosa da eucaristia.

A parte inicial da missa mereceu grande atenção na elaboração do atual rito da missa. Ela ficou muito rica nos seus elementos rituais. E precisamente estes ritos iniciais prestam-se à adaptação e à criatividade das comunidades celebrantes. Ora, muitas vezes, sobrecarrega-se ainda mais esta parte da missa, esquecendo-se que é apenas a abertura da celebração eucarística com suas duas grandes partes: a liturgia da palavra e a liturgia eucarística. Raramente se lembra a recomendação dada para missas mais simples e sobretudo as missas com crianças, de omitir, às vezes, um ou outro elemento destes ritos iniciais, precisamente para não dar demais peso a eles.

Na liturgia da palavra as introduções às leituras são frequentemente comentários que antecipam aquilo que a leitura vai dizer. Se nós já dizemos de antemão o que Deus vai falar e como devemos entender, a rigor nem precisamos mais proclamar a palavra de Deus; o comentarista já deu a mensagem. Às vezes, uma introdução, contextualizando uma leitura, pode ser oportuna, mas os comentários sobre ela se fazem na homilia. A homilia, por sua vez, em muitos casos é antes palavra de quem faz a explicação da palavra de Deus dentro da realidade em que vivemos.

Da liturgia eucarística, a primeira parte, a preparação das oferendas, se capricha mais e chama mais a atenção do que as outras, que são mais importantes, já porque a primeira apenas prepara as seguintes. E quem diria que a oração eucarística é sempre proferida como Jesus rezou na última Ceia, as bênçãos sobre o pão e o vinho? A fração do pão que deu, no novo testamento, o nome à eucaristia, além do nome “Ceia do Senhor”, geralmente nem se nota. Sem sentido é, também, o gesto de partir hóstia grande ao pronunciar, na narrativa da instituição da eucaristia, as palavras “partiu o pão”. A aclamação ao Cordeiro de Deus, que acompanha a fração do pão depois da oração eucarística, às vezes, parece ter só o sentido de ser o sinal de parar com a saudação da paz.

Esta saudação da paz é sem dúvida para muitos participantes das nossas missas o momento mais interessante da liturgia eucarística, que impressiona mais do que qualquer outro. Mas tem ela o sentido de celebrar aquela paz que o Cristo pascal, o celebrante por excelência da eucaristia nos dá, como a deu na tarde do dia da ressurreição aos apóstolos, como fruto de sua morte e ressurreição? Entendemos esta saudação como sinal de reconciliação entre nós e todos os cristãos, antes de participarmos na mesa da comunhão eucarística do único pão e do mesmo cálice, como membros do único corpo místico de Cristo? Ou é apenas um gesto de confraternização?

A oração pela paz é em si uma oração muito oportuna, mas não foi sem motivo que a comissão pós-conciliar para a reforma do rito da missa a quis cancelar, porque ela não se integra bem na estrutura da missa como Ceia do Senhor. Depois da oração eucarística, que é a bênção da mesa, deveria se proceder ao comer e beber e não enxertar ainda várias orações, por mais bonitas e oportunas que sejam. O pai nosso não quebra o ritmo da estrutura da missa como refeição, pois pode ser considerado como uma pequena oração eucarística ou bênção da mesa; nele pedimos o pão nosso de cada dia, que é também a eucaristia. Mas não se justifica do mesmo modo a oração ”Livrai-nos...” depois do Pai nosso e a oração pela paz. Ora, dar ainda mais relevo à oração pela paz, como acontece quando ela é rezada em comum por toda a assembleia, significa uma ruptura na estrutura da missa que não pode justificar.

A mesma atenção que acabamos de dar à estrutura da missa, poderíamos dar às outras dimensões da celebração eucarística, por exemplo, a de reunião ou de encontro ou de presença ou de sacrifício, ou de memória e páscoa. Mas isso excederia o quadro deste artigo. No entanto, um exemplo seja ainda dado para mostrar como tais análises podem ser oportunas para se chegar a evitar abusos. Se analisássemos a missa como memorial da obra redentora de Cristo com seu ponto culminante na morte e ressurreição do Senhor, ficaria bem claro que não se pode tolerar o costume de cantar depois da narrativa da instituição da eucaristia um canto de adoração ao Santíssimo Sacramento, muito menos uma procissão com a hóstia consagrada pela igreja, substituindo assim ou pelo menos ofuscando a dimensão memorial explícita que se exige na resposta da assembleia ao Eis o mistério da fé e se exprime também logo em seguida na própria oração eucarística. O missal não desconhece a adoração. Lembremos só o Glória e os inícios das orações eucarísticas, sobretudo da quarta oração, na qual rezamos: Vós sois o Deus vivo e verdadeiro que existis antes de todo o tempo e permaneceis para sempre, habitando em luz inacessível. Também não falta expressão de adoração do Senhor nas espécies do pão e do vinho, pois quem preside a missa faz uma genuflexão quando mostra, depois das palavras de Jesus sobre o pão e o vinho, o corpo de Cristo e o cálice com o sangue do Senhor, igualmente antes da comunhão. Mas este gesto da genuflexão, como eventualmente, ao mesmo tempo, o da inclinação profunda de todos os participantes da missa, são tão sóbrios que não prejudicam a dimensão memorial da eucaristia. Para ulterior adoração do Senhor presente no pão consagrado e oração diante do sacrário, que são muito recomendáveis, há lugar e tempo depois e em geral fora da missa.

4. Resumo da história da celebração eucarística

Nas considerações que acabamos de fazer sobre a atual situação da celebração eucarística no Brasil já nos referimos, muitas vezes, à história da missa, mas estes acenos não me parecem dispensar a apresentação de um breve resumo desta história, que certamente nos ajudará a compreender melhor como se chegou à situação atual com suas deformações. Lembrarei apenas fases desta história que eram relevantes na evolução que levou à prática celebra-tiva atual.

Jesus instituiu a eucaristia na forma ritual de refeição. Ele a celebrou dentro de uma ceia festiva, mas o rito da própria eucaristia se separou, parece, já no 1o século, de uma refeição comunitária de confraternização ou ágape, que se faz para matar a fome do corpo. Conseqüência desta separação foi que a própria Ceia do Senhor se reduziu a uma refeição ritual com um pouco de pão e um pouco de vinho. Desta maneira a consciência da eucaristia como refeição entrou em segundo plano, ao passo que a partir do 2o século esta celebração geralmente foi chamada de eucaristia. Isso mostra que se viu nela, em primeiro lugar uma ação verbal e não mais uma refeição, sem, no entanto, se perder a estrutura básica da refeição. Mais tarde entrou em primeiro plano a dimensão de sacrifício e, na idade média, de presença de Jesus no pão consagrado. Este processo de esquecimento da dimensão da eucaristia como refeição foi reforçado pela redução do pão eucarístico a pão ázimo que, sobretudo na forma das pequenas partículas brancas, como as temos hoje dificilmente pode ser reconhecido como verdadeiro pão. Além disso, chegou-se a proibir aos fiéis a comunhão do sangue de Cristo. O resultado desta evolução, na qual entraram ainda alguns outros fatores, como por exemplo a impossibilidade de uma ativa participação dos fiéis na celebração eucarística, que se realizava em latim, o que eles não entendiam, levou finalmente a compreender como eucaristia a hóstia consagrada, e a participação consistia, sobretudo no ver e adorar a hóstia. A eucaristia tinha se tornado uma devoção.

Contra esta evolução reagiram os reformadores protestantes do século XVI, mas não apenas com críticas objetivas e construtivas. Por isso o Concílio de Trento se viu obrigado a defender contra eles a fé eucarística da idade média, que em muitas expressões teológico-litúrgicas e celebrativas, infelizmente não era mais em tudo fiel à instituição de Jesus e à autêntica tradição apostólica. Pelo menos, muitos acentos, como vimos, foram deslocados. No entanto, a doutrina do Concílio de Trento orientou nos séculos seguintes, além da teologia e da liturgia, também os catecismos e toda a espiritualidade eucarística.

O movimento litúrgico do século XX, com seu coroamento no Concílio Vaticano II, e a reforma litúrgica pós-conciliar significaram realmente uma volta às fontes, mas infelizmente o espírito do concílio e da eucaristia não foram, nem de longe, compreendidos por todos os católicos. Observa-se, até recentemente, uma recaída mais forte no espírito em que se via e se celebrava a eucaristia antes do Vaticano II. A esta falta de compreensão da teologia do Vaticano II e a conseqüente inobservância das orientações práticas do magistério devem-se às deformações e os abusos que hoje se constatam na celebração da eucaristia. Antes de mais nada, seria necessária uma teologia litúrgica da eucaristia que se baseia na bíblia e na tradição autêntica, mas nem mesmo na maioria dos institutos teológicos, onde se forma, sobretudo o clero, tal teologia eucarística é ensinada e por isso em geral também não é transmitida aos leigos, particularmente aos agentes da pastoral litúrgica.

Como acabamos de fazer um apanhado resumido da história da eucaristia, seria oportuno apresentar também a sua teologia, mas, mesmo um resumo da teologia de uma realidade tão rica como é a eucaristia, se quer ser válido, extrapolaria o quadro deste artigo na Revista de Liturgia. Não se esqueça, no entanto, que muitos elementos teológicos importantes já foram apresentados ao longo da análise da prática celebrativa atual da eucaristia.

5. Livros litúrgicos e documentos do magistério

Por não ter apresentado neste artigo um resumo da teologia da eucaristia, parece ainda mais indispensável uma referência aos livros litúrgicos e uma indicação dos documentos do magistério que dão todas as orientações necessárias e úteis para uma autêntica celebração da eucaristia.

A orientação básica nos é dada pelos livros litúrgicos. Aqueles que dizem respeito à eucaristia são, em primeiro lugar, o missal e os lecionários da missa e ainda o ritual para a sagrada comunhão e o culto eucarístico fora da missa. Também outros livros litúrgicos, sobretudo aqueles dos sacramentos que se celebram sempre ou opcionalmente dentro da missa, se referem à eucaristia, como o Pontifical Romano com respeito à confirmação e às ordenações, a bênção de abade e abadessa, a consagração das virgens, a profissão religiosa, a dedicação e bênção de igreja e altar, o ritual de iniciação cristã de adultos, o ritual do matrimônio, o ritual da unção dos enfermos e sua assistência pastoral, este particularmente com o rito da visita e comunhão aos enfermos e o viático, também o ritual de exéquias. Todos estes rituais trazem uma introdução que geralmente lembra primeiro a teologia da respectiva celebração e dá em seguida as orientações necessárias para sua realização. Entre todas estas introduções, merece grande destaque a Instrução Geral do Missal Romano, da qual temos desde 2002 uma nova edição.

Sobre a eucaristia temos ainda numerosos outros documentos dos papas e da Sé apostólica, também da CNBB e de várias dioceses. Particularmente importante é para nós no Brasil a segunda parte do documento 43 da CNBB: Animação da vida litúrgica no Brasil, que dá orientações pastorais sobre a celebração eucarística. As cinco instruções da Sé apostólica para uma correta aplicação da constituição do Concílio Vaticano II sobre a liturgia tratam da liturgia em geral, mas em muitas partes também explicitamente da eucaristia.

Os papas dedicaram vários de seus escritos à eucaristia: Paulo VI, a encíclica Mysterium fidei (Mistério da fé) e João Paulo II, a encíclica Ecclesia de eucaristia [A Igreja (vive) da eucaristia] e a carta apostólica Mane nobiscum domine (Ficai conosco, Senhor). A mais recente instrução Sacramentum redemptionis (O sacramento da redenção), que tem o subtítulo “Sobre alguns aspectos que se deve observar e evitar acerca da santíssima eucaristia”, é um prolongamento disciplinar da encíclica Ecclesia de eucaristia, que tem um cunho mais teológico e espiritual. Esta última instrução provocou, parece, por toda parte do mundo católico, reações de decepção. De fato, ela pode dar a impressão de ser um elenco de abusos na celebração da eucaristia que se registraram pelo mundo afora e que a Sé apostólica procura corrigir. A intenção do documento é clara: favorecer da melhor maneira possível o bem espiritual das comunidades que celebram a eucaristia. Certamente ele teria sido melhor acolhido se sua linguagem fosse mais pedagógica e cativante. Em todo caso, esta instrução não introduz novas restrições à liberdade que os livros litúrgicos e os documentos anteriores deram na maneira de celebrar, a não ser em pouquíssimos detalhes de menor importância. Em geral lembra as normas e orientações que se encontram já nos documentos anteriores e aponta para abusos que realmente deveriam ser evitados e corrigidos. Sem menosprezar este e outros dos documentos mais recentes, não hesito em recomendar que se procure a orientação para a celebração da eucaristia, sobretudo na Instrução Geral do Missal Romano de 2002.

6. Propostas de ação

A prática celebrativa da eucaristia deve se orientar basicamente, e em primeiro lugar, pela instituição de Jesus. Devemos, portanto, fazer aquilo que ele fez e mandou fazer em memória dele. Confrontando nossa prática celebrativa atual com a herança autêntica de Jesus Cristo, podemos detectar as deformações indevidas e encontrar pistas para as correções e melhorias necessárias. Em outras palavras: já que tratamos da prática celebrativa, portanto, do lado ritual ou externo da celebração eucarística, não há dúvidas que na procura de propostas para a ação devemos nos orientar, sobretudo na estrutura da missa, que é a de uma refeição. Não devemos nos esquecer das dimensões mais internas da eucaristia que se espelham no rito, mas direta e imediatamente devemos ter em vista o rito e sua autenticidade.

A própria dimensão de ceia poderia se manifestar sem grandes dificuldades muito melhor do que é geralmente o caso. Por exemplo: poderíamos, deveríamos usar para a celebração da eucaristia pão que de fato parece ser pão. Dentro das prescrições do missal, as hóstias podem ser maiores, mais grossas, de farinha não tão refinada que nem tem mais a cor de pão. Também para os fiéis as hóstias podem ser grandes, de modo que sejam partidas. A comunhão sob as duas espécies pode ser bem mais frequente do que é na realidade. As orientações da CNBB que se encontram no Diretório litúrgico, a permitem praticamente sempre. Se levássemos a sério a ordem do Senhor: Tomai e comei... e tomai e bebei... e o significado da comunhão sob as duas espé-cies, não hesitaríamos mais em praticá-la, pelo menos muito mais frequentemente. Mesmo o ideal de um número maior de pessoas tomar o Sangue de Cristo de um único cálice, não encontra da parte dos fiéis receio; em todo caso, nunca o notei em minhas comunidades. Pelo contrário, com a devida preparação dos fiéis eles se encantam com esta maneira de comungar.

Fácil é também tornar as nossas missas mais festivas, menos monótonas e enfadonhas, menos verbosas e cerebrais, sem deslizar em celebrações tipo show. Se os instrumentos sustentam o canto e se este já pela sua letra exprime o mistério que se celebra, também quando em certos momentos somente o toque de instrumentos cria clima de oração e de alegria profunda, música e canto exercem realmente o seu ministério a serviço da liturgia e da comunidade celebrante. Assim, a celebração se torna ainda mais prenhe do mistério de Cristo, da páscoa dele e do povo. Para facilitar tal participação plena e frutuosa de toda a assembleia litúrgica em clima festivo seria também importante não usar os costumeiros folhetos que impedem uma comunicação plena entre os ministros, sobretudo os que proclamam a palavra de Deus, e a assembleia. A comunicação não deve se reduzir à dimensão acústica; é a pessoa toda, também com sua postura e expressão de rosto, com seu olhar e seus gestos que se comunica. Não se justificam os folhetos com o argumento que os leitores e, é verdade, frequentemente também os ministros ordenados, não se comunicam; eles devem ser formados para isso. Onde se vê numa festa que tudo aquilo que será falado se apresenta em folheto?

Seria bom se pudéssemos também para o canto dispensar qualquer subsídio impresso, mas um livro de canto que se toma nas mãos somente quando a assembleia canta, prejudica relativamente pouco. Ao contrário dos folhetos, o bom livro de canto tem a grande vantagem de possibilitar a escolha de cânticos que não somente exprimem aquilo que se celebra, mas corresponda também ao gosto e a capacidade da assembleia que vai cantar. É claro que tal livro deve conter cânticos litúrgicos, que cantam o mistério de Cristo e a vida da comunidade, de acordo com todo o ano litúrgico, e não apenas cânticos quaisquer de confraternização ou de luta social ou também intimistas e subjetivistas que não falam do mistério que se celebra.

Mais ainda do que o elenco das deformações em nossas celebrações da eucaristia poderia ser prolongado o elenco das sugestões para corrigi-las, mas muitas propostas já foram feitas direta ou indiretamente quando analisamos as deformações. Também seria impossível aqui pretender ser completo e dar todas as sugestões possíveis. Todas as propostas a serem feitas encontram-se nos livros litúrgicos e em documentos do magistério.

Uma sugestão, porém, seja ainda dada aqui. É até mais do que uma sugestão, é um chamado de atenção a uma necessidade urgente e de capital importância: Devemos incrementar a formação de nossas comunidades e de seus ministros leigos e ordenados. Só assim será possível realizar a grande tarefa que é vital para nossas comunidades, para a Igreja e para o mundo, que a eucaristia, o coração de tudo, seja celebrada como aquela Ceia que o Senhor nos deixou em sua memória. Mas não é apenas a formação litúrgica que falta, falta formação humana e cristã em geral e especialmente para os ministros ordenados uma formação teológico-litúrgica sólida. São poucas as famílias que colocam nos seus filhos os fundamentos para uma vida de fé que dê a eles condições para poderem celebrar esta fé. A catequese, particularmente aquela que é chamada de primeira comunhão, geralmente não é uma verdadeira iniciação à eucaristia. Deficiente é, muitas vezes, também a formação litúrgica dos membros das equipes de liturgia e dos ministros leigos, inclusive dos que ajudam na distribuição da comunhão. E mesmo a formação litúrgica do clero nos institutos de teologia e nos seminários deixa a desejar.

Conclusão

Nestas páginas se tocou em muitos problemas. Nem todos são da mesma importância. Grande parte destes problemas se pode solucionar com facilidade. Em geral se exige uma melhor formação dos que celebram a eucaristia, sobretudo dos ministros. Considerando o conjunto das deformações em nossas celebrações eucarísticas e as consequências nefastas que causam em nossas comunidades, na Igreja e no mundo, devemos estar profundamente preocupados e procurar melhorar a situação com urgência e com todas as nossas forças, fazendo de imediato o que dá para fazer para corrigir os erros, mas também, e isso parece ser ainda mais importante, investir na formação humana, cristã e teológico-litúrgica de nós mesmos, de nossas comunidades e dos seus agentes, sobretudo dos que presidem as celebrações eucarísticas.


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Pe. Gregório Lutz é doutor em liturgia, professor e coordenador do Centro de Liturgia da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção em São Paulo.

Santo Tomás de Aquino

Das Conferências de Santo Tomás de Aquino, presbítero




Na cruz não falta nenhum exemplo de virtude

Que necessidade havia para que o Filho de Deus sofresse por nós? Uma necessidade grande e, por assim dizer, dupla: para ser remédio contra o pecado e para exemplo do que devemos praticar.

Foi em primeiro lugar um remédio, porque na paixão de Cristo encontramos remédio contra todos os males que nos sobrevêm por causa dos nossos pecados.

Mas não é menor a utilidade em relação ao exemplo. Na verdade, a paixão de Cristo é suficiente para orientar nossa vida inteira. Quem quiser viver na perfeição, nada mais tema fazer do que desprezar aquilo que Cristo desprezou na cruz e desejar o que ele desejou. Na cruz, pois, não falta nenhum exemplo de virtude.

Se procuras um exemplo de caridade: Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos (Jo 15,13). Assim fez Cristo na cruz. E se ele deu sua vida por nós, não devemos considerar penoso qualquer mal que tenhamos de sofrer por causa dele.

Se procuras um exemplo de paciência, encontras na cruz o mais excelente! Podemos reconhecer uma grande paciência em duas circunstâncias: quando alguém suporta com serenidade grandes sofrimentos, ou quando pode evitar os sofrimentos e não os evita. Ora, Cristo suportou na cruz grandes sofrimentos, e com grande serenidade, porque atormentado, não ameaçava (1Pd 2,23); foi levado como ovelha ao matadouro e não abriu a boca (cf. Is 53,7; At 8,32).

É grande, portanto, a paciência de Cristo na cruz. Corramos com paciência ao combate que nos é proposto, com os olhos fixos em Jesus, que em nós começa e completa a obra da fé. Em vista da alegria que lhe foi proposta, suportou a cruz, não se importando com a infâmia (cf. Hb 12,1-2).
Se procuras um exemplo de humildade, contempla o crucificado: Deus quis ser julgado sob Pôncio Pilatos e morrer.
Se procuras um exemplo de obediência, segue aquele que se fez obediente ao Pai até à morte: Como pela desobediência de um só homem, isto é, de Adão, a humanidade toda foi estabelecida numa condição de pecado, assim também pela obediência de um só, toda a humanidade passará para uma situação de justiça (Rm 5,19).

Se procuras um exemplo de desprezo pelas coisas da terra, segue aquele que é Rei dos reis e Senhor dos senhores, no qual estão encerrados todos os tesouros da sabedoria e da ciência (Cl 2,3), e que na cruz está despojado de suas vestes, escarnecido, cuspido, espancado, coroado de espinhos e, por fim, tendo vinagre e fel como bebida para matar a sede.


Não te preocupes com as vestes e riquezas, porque repartiram entre si as minhas vestes (Jo 19,24); nem com honras, porque fui ultrajado e flagelado; nem com a dignidade, porque tecendo uma coroa de espinhos, puseram-na em minha cabeça (cf. Mc 15,17); nem com os prazeres, porque em minha sede ofereceram-me vinagre (Sl 68,22).

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

São Timóteo e São Tito

Das Homilias de São João Crisóstomo, bispo




Combati o bom combate

Na estreiteza do cárcere, Paulo parecia habitar no céu. Recebia os açoites e feridas com mais alegria do que outros que recebem coroas de triunfo; e não apreciava menos as dores do que os prêmios, porque considerava estas mesmas dores como prêmios que desejava, e até as chamava de graças. Considerai com atenção o significado disto: prêmio, para ele, era partir, para estar com Cristo (cf. Fl 1,23), ao passo que viver na carne significava o combate. Mas, por causa de Cristo, sobrepunha ao desejo do prêmio a vontade de prosseguir o combate, pois considerava ser isto mais necessário.

Estar longe de Cristo representava para ele o combate e o sofrimento, mais ainda, o máximo combate e a mais intensa dor. Pelo contrário, estar com Cristo era um prêmio único. Paulo, porém, por amor de Cristo, prefere o combate ao prêmio.

Talvez algum de vós afirme: Mas ele sempre dizia que tudo lhe era suave por amor de Cristo! Isso também eu afirmo, pois as coisas que são para nós causa de tristeza eram para ele enorme prazer. E por que me refiro aos perigos e tribulações que sofreu? Na verdade, seu profundo desgosto o levava a dizer: Quem é fraco, que eu também não seja fraco com ele? Quem é escandalizado, que eu não fique ardendo de indignação? (2Cor 11,29).

Rogo-vos, pois, que não vos limiteis a admirar este tão ilustre exemplo de virtude, mas, imitai-o. Só assim poderemos ser participantes da sua glória.

E se algum de vós se admira por eu dizer que quem imita os méritos de Paulo participará da sua recompensa, ouça o que ele mesmo afirma: Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé. Agora está reservada para mim a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos que esperam com amor a sua manifestação gloriosa (2Tm 4,7-8).

Por conseguinte, já que é oferecida a todos a mesma coroa de glória, esforcemo-nos todos por ser dignos dos bens prometidos.


Não devemos considerar em Paulo apenas a grandeza e a excelência das virtudes, a prontidão de espírito e o propósito firme, pelos quais mereceu tão grande graça; mas pensemos também que a sua natureza era em tudo igual à nossa; e assim, também a nós, as coisas que são muito difíceis parecerão fáceis e leves. Suportando-as valorosamente neste breve espaço de tempo em que vivemos, ganharemos aquela coroa incorruptível e imortal, pela graça e misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo. A ele a glória e o poder, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Conversão de São Paulo Apóstolo

Das Homilias de São João Crisóstomo, bispo




Por amor de Cristo, Paulo tudo suportou

O que é o homem, quão grande é a dignidade da nossa natureza e de quanta virtude é capaz a criatura humana, Paulo o demonstrou mais do que qualquer outro. Cada dia ele subia mais alto e se tornava mais ardente, cada dia lutava com energia sempre nova contra os perigos que o ameaçavam. É o que depreendemos de suas próprias palavras: Esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente (cf. Fl 3,13). Percebendo a morte iminente, convidava os outros a comungarem da sua alegria, dizendo: Alegrai-vos e congratulai-vos comigo (Fl 2,18). Diante dos perigos, injúrias e opróbrios, igualmente se alegra e escreve aos coríntios: Eu me comprazo nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições (2Cor 12,10); porque sendo estas, conforme declarava, as armas da justiça, mostrava que delas lhe vinha um grande proveito.

Realmente, no meio das insídias dos inimigos, conquistava contínuas vitórias triunfando de todos os seus assaltos. E em toda parte, flagelado, coberto de injúrias e maldições, como se desfilasse num cortejo triunfal, erguendo numerosos troféus, gloriava-se e dava graças a Deus, dizendo: Graças sejam dadas a Deus que nos fez sempre triunfar (2Cor 2,14). Por isso, corria ao encontro das humilhações e das ofensas que suportava por causa da pregação, com mais entusiasmo do que nós quando nos apressamos para alcançar o prazer das honrarias; aspirava mais pela morte do que nós pela vida; ansiava mais pela pobreza do que nós pelas riquezas; e desejava muito mais o trabalho sem descanso do que nós o descanso depois do trabalho. Uma só coisa o amedrontava e fazia temer: ofender a Deus. E uma única coisa desejava: agradar a Deus.

Só se alegrava no amor de Cristo, que era para ele o maior de todos os bens; com isto julgava-se o mais feliz dos homens; sem isto, de nada lhe valia ser amigo dos senhores e poderosos. Com este amor preferia ser o último de todos, isto é, ser contado entre os réprobos, do que encontrar-se no meio de homens famosos pela consideração e pela honra, mas privados do amor de Cristo.

Para ele, o maior e único tormento consistia em separar-se de semelhante amor; esta era a sua geena, o seu único castigo, o infinito e intolerável suplício.

Em compensação, gozar do amor de Cristo era para ele a vida, o mundo, o anjo, o presente, o futuro, o reino, a promessa, enfim, todos os bens. Afora isto, nada tinha por triste ou alegre. De tudo o que existe no mundo, nada lhe era agradável ou desagradável.

Não se importava com as coisas que admiramos, como se costuma desprezar a erva apodrecida. Para ele, tanto os tiranos como as multidões enfurecidas eram como mosquitos.


Considerava como brinquedo de crianças os mil suplícios, os tormentos e a própria morte, desde que pudesse sofrer alguma coisa por Cristo.

sábado, 24 de janeiro de 2015

São Francisco de Sales

Da Introdução à Vida Devota, de São Francisco de Sales, bispo




A devoção deve ser praticada de modos diferentes

Na criação, Deus Criador mandou às plantas que cada uma produzisse fruto conforme sua espécie. Do mesmo modo, ele ordenou aos cristãos, plantas vivas de sua Igreja, que produzissem frutos de devoção, cada qual de acordo com sua categoria, estado e vocação.

A devoção deve ser praticada de modos diferentes pelo nobre e pelo operário, pelo servo e pelo príncipe, pela viúva, pela solteira ou pela casada. E isto ainda não basta. A prática da devoção deve adaptar-se às forças, aos trabalhos e aos deveres particulares de cada um.

Dize-me, por favor, Filotéia, se seria conveniente que os bispos quisessem viver na solidão como os cartuxos; que os casados não se preocupassem em aumentar seus ganhos mais que os capuchinhos; que o operário passasse o dia todo na igreja como o religioso; e que o religioso estivesse sempre disponível para todo tipo de encontros a serviço do próximo, como o bispo. Não seria ridícula, confusa e intolerável esta devoção?

Contudo, este erro absurdo acontece muitíssimas vezes. E no entanto, Filotéia, a devoção quando é verdadeira não prejudica a ninguém; pelo contrário, tudo aperfeiçoa e consuma. E quando se torna contrária à legítima ocupação de alguém, é falsa, sem dúvida alguma.

A abelha extrai seu mel das flores sem lhes causar dano algum, deixando-as intactas e frescas como encontrou. Todavia, a verdadeira devoção age melhor ainda, porque não somente não prejudica a qualquer espécie de vocação ou tarefa, mas ainda as engrandece e embeleza.

Toda a variedade de pedras preciosas lançadas no mel, tornam-se mais brilhantes, cada qual conforme sua cor; assim também cada um se torna mais agradável e perfeito em sua vocação quando esta for conjugada com a devoção: o cuidado da família se torna tranquilo, o amor mútuo entre marido e mulher, mais sincero, o serviço que se presta ao príncipe, mais fiel, e mais suave e agradável o desempenho de todas as ocupações.

É um erro, senão até mesmo uma heresia, querer excluir a vida devota dos quartéis de soldados, das oficinas dos operários, dos palácios dos príncipes, do lar das pessoas casadas. Confesso, porém, caríssima Filotéia, que a devoção puramente contemplativa, monástica e religiosa de modo algum pode ser praticada em tais ocupações ou condições. Mas, para além destas três espécies de devoção, existem muitas outras, próprias para o aperfeiçoamento daqueles que vivem no estado secular.


Portanto, onde quer que estejamos, devemos e podemos aspirar à vida perfeita.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A reforma do Ano Litúrgico a partir do Concílio Vaticano II (parte VIII)

A Quaresma

Ponham-se em maior realce, tanto na liturgia como na catequese litúrgica, os dois aspectos característicos do tempo quaresmal, que pretende, sobretudo através da recordação ou preparação do batismo e pela penitência, preparar os fiéis, que devem ouvir com mais frequência a Palavra de Deus e dar-se à oração com mais insistência, para a celebração do mistério pascal. Por isso:

a) utilizem-se com mais abundância os elementos batismais próprios da liturgia quaresmal e retomem-se, se parecer oportuno, elementos da antiga tradição;

b) o mesmo se diga dos elementos penitenciais. Quanto à catequese, inculque-se nos espíritos, de par com as consequências sociais do pecado, a natureza própria da penitência, que é detesta o pecado por ser ofensa de Deus; nem se deve esquecer a parte da Igreja na prática penitenciai, nem deixar de recomendar a oração pelos pecadores (SC 109).

A penitência quaresmal deve ser também externa e social, que não só interna e individual. Estimule-se a prática da penitência, adaptada ao nosso tempo, às possibilidades das diversas regiões e à condição de cada um dos fiéis. Recomendem-na as autoridades a que se refere o art. 22.

Mantenha-se religiosamente o jejum pascal, que se deve observar em toda a parte na sexta-feira da paixão e morte do Senhor e, se oportuno, estender-se também ao Sábado santo, para que os fiéis possam chegar à alegria da ressurreição do Senhor com elevação e largueza de espírito (SC 110).

Curiosamente o Concílio Vaticano II dá atenção especial ao tempo da quaresma, diferente dos demais tempos, como advento e páscoa. Não significa que os demais tempos litúrgicos sejam menos importantes, mas o Concílio propõe resgatar a natureza própria do tempo quaresmal, restabelecendo sua finalidade. A Sacrosanctum Concilium realça dois aspectos fundamentais da quaresma: a índole batismal e a índole penitencial. O Concílio deseja que por meio destes dois aspectos a quaresma seja de fato um tempo de preparação para a celebração do mistério pascal, por meio da leitura mais frequente da Palavra de Deus e da oração. Recomenda o uso mais abundante dos elementos batismais, próprios da liturgia quaresmal, bem como os elementos penitenciais. Destaca igualmente que, na catequese sejam apresentadas as consequências sociais do pecado e a natureza própria da penitência.

No número 110, a Sacrosanctum Concilium procura recuperar a prática penitencial na quaresma. Tradicionalmente, a oração, o jejum e a caridade (esmola) são tidos como exercícios quaresmais, exercícios de conversão evangélica. Porém, insiste para que não seja tão somente uma prática interna e individual, mas também externa e social, e por assim dizer, eclesial (cf. SC 110).

Para A. Beckhäuser: “o problema consiste em redescobrir o sentido autêntico de penitência conforme a Bíblia. Penitência é mudança de vida, penitência é sinônimo de conversão evangélica.”[23]Infelizmente a penitência com o passar do tempo, foi adquirindo um sentido meramente negativo de renúncia, mortificação. É claro que estes motivos são verdadeiros e válidos, porém, é preciso avançar no sentido próprio da penitência. Se ela é mudança de vida, é preciso cultivar o bem e recusar a prática do mal. Ela consiste em viver o mandamento do Senhor, que diz que se deve procurar amar a Deus e o próximo. Segundo São Leão Magno, os três exercícios quaresmais consiste em:

a) A oração – é o maior exercício da penitência, ou seja, viver como filhos de Deus;

b) O jejum – consiste na nossa relação com Deus e com o mundo criado;

c) A esmola (caridade) – trata-se de nossa relação com o próximo.

Tais exercícios em primeiro lugar devem nos ajudar a vivenciar melhor o mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Eles devem estar conformes a própria liturgia. São exercícios que nos ajudam a nos preparar para celebrar o mistério pascal de Cristo. Em segundo lugar, eles devem nos ajudar a viver mais coerentemente a prática do amor fraterno. Por isso estão relacionados ao nosso amor a Deus e ao próximo.

Além destes exercícios quaresmais, há outros que igualmente podem nos auxiliar na busca constante de Deus e do próximo. Temos por exemplo a via-sacra, os momentos penitenciais e no Brasil, por ocasião da quaresma, realiza-se todos os anos a Campanha da Fraternidade, que tem como finalidade voltar nossa atenção para a realidade social de nosso povo e buscar soluções evangélicas para solucioná-las.

A Constituição Sacrosanctum Concilium insiste ainda que se mantenha a prática do jejum pascal, se possível não somente na sexta-feira santa, mas também no sábado santo. Este jejum tem por finalidade nos fazer celebrar as alegrias pascais com espírito livre e aberto.

[23]BECKHÄUSER, Alberto. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 132.