terça-feira, 31 de março de 2015

TRÍDUO PASCAL: FONTE E FIM DO ANO LITÚRGICO

Manoel Gomes Filho



            Este trabalho tem como objetivo entender o Tríduo Pascal em suas dimensões histórica, teológica e pastoral. A partir da leitura de autores reconhecidos e de alguns textos da Congregação para o Rito e a Disciplina dos Sacramentos, buscamos entender como foi sendo formado o que hoje conhecemos como Tríduo Pascal e como ele se apresenta atualmente. Algumas orientações mais no viés pastoral também serão expostas para uma melhor celebração do Mistério da Salvação.

1 Tríduo Pascal: sentido e estrutura

            Celebrar o Tríduo Pascal é voltar-se para o Mistério da Redenção, consciente que nestes dias faz-se memória dos acontecimentos salvíficos de nossa fé. Não se trata apenas de fazer memória, no sentido comum da expressão, mas revivendo cada mistério celebrado nestes dias. O Tríduo Pascal está na origem histórica e teológica de todo o Ano Litúrgico. Todas as celebrações litúrgicas têm sentido somente a partir da Páscoa. É por isso que precisamos compreender bem seu sentido e sua estrutura.
            As Normas Universais sobre o Ano Litúrgico trazem de maneira clara e direta o sentido e a importância destes dias:

Como o Cristo realizou a obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus principalmente pelo seu mistério pascal, quando morrendo destruiu a nossa morte e ressuscitando renovou a vida, o sagrado Tríduo pascal da Paixão e Ressurreição do Senhor resplandece como o ápice de todo o ano litúrgico. Portanto, a solenidade da Páscoa goza no ano litúrgico a mesma culminância do domingo em relação à semana.[1]


            Embora toda a vida, ensinamento e atitudes de Jesus façam parte de sua obra salvadora, foi por meio do mistério pascal que ele nos redimiu. Celebrar a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo é, portanto, atualizar, individual e comunitariamente, aquilo que ele realizou por todos e por cada um nos seus últimos dias.
            É importante salientar que o Mistério celebrado nesses dias não se divide em partes independentes. Uma dimensão leva à outra, interligando-se e formando uma unidade. Segundo E. Aliaga, “esse tríduo é a própria realidade da páscoa do Senhor celebrada sacramentalmente em três dias, cujo centro de gravitação se acha obviamente na vigília pascal com sua celebração eucarística”.[2] Trata-se, como se percebe, de um Mistério que é celebrado sacramentalmente em momentos distintos, mas não se deve tentar explicar uma destas partes sem levar em conta o todo.
            No decorrer dos séculos, como será possível notar no próximo subtítulo, a celebração do tríduo se deu de diversas maneiras e foi passando por uma evolução até chegar à atual estrutura. Essas mudanças se deram tanto na organização das celebrações dentro do tríduo como na definição da exata extensão desse tempo sagrado.
            Hoje temos a seguinte estrutura: “o Tríduo da Paixão e Ressurreição do Senhor começa com a Missa vespertina na Ceia do Senhor, possui o seu centro na Vigília Pascal e encerrando-se com as vésperas do domingo da Ressurreição”.[3]
            A liturgia da Igreja em suas solenidades utiliza-se do modo judaico de contar os dias. Não se começa a calcular as horas a partir da meia-noite, mas do anoitecer do dia anterior. Os dias que formam o Tríduo Pascal são, desse modo, Sexta-feira Santa, Sábado Santo e Domingo de Páscoa. A Quinta-feira Santa é “o dia anterior à Páscoa” ou “a quinta-feira da última semana da Quaresma”. Já Santo Agostinho em uma de suas epístolas (54,5-6: PL 33, 202) chamava desse modo a nossa Quinta-feira Santa.
            Por influências que veremos mais adiante, alguns particulares históricos foram sendo muito valorizados na celebração do mistério pascal. Eles foram importantes na formação do Tríduo como nós o celebramos, mas não podem ser supervalorizados. A. Bergamini faz, nesse sentido, uma importante advertência:

Não pode entrar no espírito da celebração litúrgica desses dias, no mistério profundo da Páscoa, aquele que se atém somente a alguns aspectos parciais das celebrações, aos particulares históricos (embora eles tenham influenciado na formação dos ritos), ao aspecto devocional para cada um dos momentos da paixão e da vida gloriosa do Senhor. Pode entrar no mistério, com a graça do Espírito Santo, somente quem se coloca do ponto de vista bíblico-tipológico e procura colher a unidade e a totalidade do mistério pascal (por exemplo, os sinais dados por Cristo, o sinal de Jonas no ventre do peixe, o templo destruído e reedificado em três dias etc.).[4]

            O Tríduo está organizado de maneira a levar os fieis a trilharem com Cristo o caminho que o levará à Paixão e, três dias depois, à glorificação. Para isso é necessário ter um espírito de profunda união com Cristo e com a Igreja. Geralmente esses três dias são dos mais participados nas comunidades, e é bom que seja! Não se quer dizer que é bom que as pessoas não frequentem a igreja durante todo o ano. Mas esse fato mostra a importância que esses dias têm na consciência das pessoas. A partir deles, contando com uma boa catequese, talvez fosse possível conduzir estas pessoas a uma participação mais plena na Igreja.

2 Tríduo Pascal: breve percurso histórico

2.1 Da páscoa judaica à Páscoa cristã

É incontestável que a Páscoa cristã tenha sua origem na páscoa judaica. Jesus, os apóstolos, assim como os primeiros cristãos convertidos do judaísmo, celebraram todos os anos essa festa que, entre outros elementos, define a identidade daquele povo. É necessário, por isso, um olhar sobre a transição da páscoa do Antigo Testamento para a Páscoa cristã.
            Dois textos do Antigo Testamento falam da origem da celebração da páscoa. O primeiro (Ex 12) apresenta o sentido teológico da páscoa e mostra como Deus passou no meio do povo, quando este era escravo no Egito, para ferir os egípcios e salvar os israelitas. Neste primeiro texto é, portanto, “Deus que passa”. O segundo (Dt 16) volta-se para a salvação do povo, ou sua passagem da escravidão para a liberdade. Desse modo, é “o homem que passa”. Para o judaísmo palestinense, este não foi um grande problema. Ele se esforçará para manter a unidade do sentido teológico e seu caráter sacrificial.
            No princípio, a celebração da páscoa era de caráter familiar. É o que nos diz Aliaga:

A celebração pascal incialmente era feita no seio familiar e tinha como vítima uma cabeça de gado miúdo, mas logo se passou a uma celebração realizada por Israel em um único sacrifício cultual centralizado em Jerusalém tendo um cordeiro ou mesmo um touro por vítima (cf. Dt 16).[5]

            Um aspecto que não pode ser negligenciado é da atualização daquilo que se celebrava na páscoa. Para o judeu, celebrar a páscoa não é simplesmente lembrar algo que ficou no passado. Trata-se de se incluir de tal modo na celebração, como se Deus realizasse aqueles feitos a cada celebração. Em relação a esse ponto não se pode deixar de citar o rabino Gamaliel:

Em cada geração cada um pode considerar-se a si mesmo como se tivesse pessoalmente saído do Egito, como diz a Escritura: E tu dirás a teu filho neste dia: Tudo isso fez o Senhor por mim quando saí do Egito. O Deus santo – que seja bendito – não redimiu somente nossos pais, mas nós com eles, como diz a Escritura: Ele nos tirou de lá também a nós para conduzir-nos à terra que tinha prometido com juramento a nossos pais.[6]

            Além do judaísmo palestinense havia aquele da diáspora helenística. Para esses, era impossível ir até Jerusalém para a celebração da páscoa. Para eles, especialmente por obra de Fílon de Alexandria, acentuaram-se muito os aspectos moral e espiritual dessa celebração. Páscoa para os judeus da diáspora era quase exclusivamente passagem do vício à virtude.
            Torna-se quase desnecessário falar da centralidade ocupada pela celebração da páscoa nas comunidades apostólicas. Basta olhar com atenção as narrativas presentes nos Evangelhos. A visão de messianismo presente nos Evangelhos é iminentemente pascal. Jesus deve libertar o ser humano do pecado e conduzi-lo à vida plena com Deus. Também se dá muita importância às três últimas páscoas de Jesus como momentos importantes de sua vida pública. O fato de Jesus morrer coincidentemente durante a páscoa judaica significa essa íntima relação.
            O que diferencia, então, a Igreja do restante do judaísmo? Para Alioga, a Igreja é levada “a celebrar não mais a páscoa ‘figurativa’ (= recordação dos fatos no Êxodo), mas a páscoa da libertação que se realizou no Messias Jesus”.[7] A dimensão escatológica da páscoa judaica (a espera de um Messias libertador) é entendida pelos cristãos como já realizada.

2.2 A celebração da Páscoa nos primórdios da Igreja

            Não se tem nenhum documento que comprove a celebração da Páscoa já nos tempos apostólicos. Embora isso possa parecer um pouco estranho, não é. Basta recordar que, no princípio, a Igreja era parte integrante da tradição judaica. Para essa tradição, como vimos, a páscoa era fato estabelecido. Por isso não devemos nos espantar pelo fato de não termos dados que comprovem a celebração pascal no tempo dos apóstolos. Para eles, era desnecessário documentar isso.
            Apesar dessa carência documental, muitos autores são do parecer que já existia uma nova compreensão pascal nas comunidades apostólicas. Para isso, utiliza-se muito o texto de Paulo aos coríntios (I Cor 5,7s). Paulo, de fato, diz: “Pois nossa Páscoa, Cristo, foi imolado” (v. 7b). Entenda-se, aqui, Páscoa como cordeiro pascal. Por necessidade lógica, Alioga conclui: “uma vez admitido que a imolação do cordeiro era celebração anual, e que a imolação de Jesus substituíra a do cordeiro, era lógico admitir que a imolação de Jesus também se celebrava anualmente”.[8]
            As próprias narrativas da Última Ceia deixam transparecer alguns elementos da celebração eucarística, o que leva a crer que havia, sim, uma celebração pascal cristã já nas primeiras comunidades.
            É inegável o novo sentido dado à páscoa pelos cristãos. E é esse sentido que indica a existência da páscoa cristã nas comunidades apostólicas. Adolf Adam é desse parecer. Segundo ele,

Esta nova plenitude de sentido conferida à festa judaica nos permite supor que as comunidades apostólicas já celebravam com intensidade a memória do mistério pascal nos dias da festa da Páscoa judaica, embora a separação da celebração cristã em relação à festa judaica como dia de comemoração da história da salvação só aos poucos se tenha processado nas comunidades judeu-cristãs.[9]

2.3 A Páscoa cristã no seu desenvolvimento histórico

            No período entre os séculos II e IV, a Páscoa cristã era basicamente um culto litúrgico antecedido por dois dias de jejum. O caráter penitencial, recordando a paixão de Cristo, era muito comum. Na própria festa judaica este sentido também está presente, como nas ervas amargas, por exemplo.
            Ainda no século II surgiu uma grande disputa no seio da Igreja em relação à celebração da Páscoa. Havia modos distintos de calcular os dias para esta celebração. Um grupo defendia que a Páscoa deveria ser celebrada sempre no dia 14 de Nisan, independentemente do dia da semana em que caísse, assim como os judeus. O outro grupo celebrava a Páscoa no domingo seguinte ao 14 de Nisan. O primeiro grupo era formado principalmente por Igrejas da Ásia Menor e da Síria; o segundo, pela Igreja de Roma e a maior parte das outras Igrejas.
            Havia também alguns elementos comuns entre os dois grupos: ambos celebravam a Páscoa como uma festa litúrgica antecedida por dois dias de jejum e tinham como objetivo o mistério pascal em seu sentido amplo, embora os quartodecimanos pusessem o acento mais na morte redentora de Cristo e o outro grupo na sua Ressurreição.
            Na busca de um consenso o papa Victor fez convocar sínodos em várias Igrejas, inclusive nas de tradição joanina, para debater essa questão. Na ocasião, definiu-se que o uso a ser assumido por todas as Igrejas era o romano. No entanto, foi preciso esperar o Concílio de Niceia, em 325 para uma definição mais rigorosa.
            Embora essa problemática pareça algo distante no tempo, não é. Em tempos recentes aumentou o desejo de fixar uma data para a celebração da Páscoa. O Concílio Ecumênico Vaticano II discutiu essa questão e declarou no apêndice à Constituição Sacrosanctum Concilium: “O sagrado Concílio não se opõe à fixação da festa da Páscoa em um domingo certo do Calendário Gregoriano, com o consentimento dos interessados, principalmente os irmãos separados da comunhão com a Sé Apostólica”.
            A Páscoa foi a única festa anual da Igreja, ao menos até fins do século III. O desenvolvimento desta festa se deu a partir da Vigília pascal, que celebra a morte e ressurreição de Jesus, ou seja, a passagem da morte para a vida.
            Neste período, a Vigília era celebrada durante a noite inteira. Os fieis acompanhavam essa passagem ouvindo leituras bíblicas e participando das orações e do canto dos salmos. As Igrejas escolhiam as leituras da celebração de acordo com a tradição pascal de cada uma. Na de Roma sabe-se que se lia a narrativa da criação, a instituição da Páscoa e a travessia do Mar Vermelho. Vários testemunhos, como o de Hipólito e Tertuliano, apresentam a praxe de celebrar o batismo durante a Páscoa. A Eucaristia era celebrada ao amanhecer, iniciando assim o tempo pascal ou Pentecostes.
            No século IV aparece um fator importante na história da formação do Tríduo pascal. Nesse período, “começa a aparecer a tendência de historicizar as narrativas dos Evangelhos, especialmente em Jerusalém, onde se podia seguir melhor, nos próprios lugares, o desenvolver-se dos acontecimentos da paixão e da ressurreição do Senhor”.[10]
            Essa historicização vai contribuir muito para a elaboração das celebrações, mesmo fora de Jerusalém. Mas esse fator também teve seu lado negativo. Isso porque, embora a celebração do mistério pascal continue por um tempo de forma unitária, “logo, porém, aquilo que parecia um enriquecimento resultou num fator que não só desagregou a unidade do mistério pascal, mas também desviou a atenção do essencial”.[11]
            Nos próximos parágrafos falaremos sobre alguns desses “desvios”.
            A instituição da Eucaristia na Quinta-feira Santa começou a ser excessivamente valorizada. Com isso, o centro de toda a celebração pascal, a Eucaristia celebrada na Vigília pascal, deixou de ser o destino das atenções. Essa lembrança da instituição termina levando ao rompimento da unidade do Tríduo. Em vez de ter como dias constituintes sexta-feira, sábado e domingo, passa a ter quinta-feira, sexta-feira e sábado. Isso porque a instituição entra no cálculo dos três dias santos.
            Três ritos serão acrescentados à liturgia da Quinta-feira Santa com o passar do tempo: a transladação do Santíssimo, o desnudamento do altar e o lava-pés.
            A transladação do santíssimo tem sua origem em um gesto prático surgido principalmente a partir dos séculos XIII-XV, juntamente com a devoção “visível” da hóstia. O gesto consistia em guardar o pão eucarístico sobrante da Missa.
            O gesto do desnudamento do altar era exclusivamente funcional até ao menos o século VII. Nessa época, o altar era revestido por toalhas somente para a celebração da Eucaristia. Após seu término, ele deveria ser desnudado. Com o tempo esse gesto foi sendo interpretado e dramatizado, percebendo-se nele uma lembrança do desnudamento de Cristo.
            O lava-pés já é atestado no século V, em Jerusalém. Difundiu-se por todo o Oriente e Ocidente, embora com formas e em momentos distintos. Seu surgimento está diretamente ligado à “comemoração histórica” dos acontecimentos pascais.
            A Sexta-feira Santa foi entendida algumas vezes de modo desvirtuado. Foi vista como lembrança da morte de Cristo, mas sem ligação com sua ressurreição.
            A celebração deste dia era basicamente a liturgia da Palavra. É o que nos diz Alioga: “no início, a liturgia da palavra estava em primeiro lugar: tratava-se de um dia alitúrgico (como a quarta-feira), dia de jejum e, por isso, sem a liturgia eucarística e limitado à liturgia da palavra”.[12]
            O rito da adoração da cruz, já descrito por Etéria no século IV, é introduzido em Roma nos anos 700-750. Neste rito sobressai a entrada solene da cruz, com aclamação “Eis o lenho da cruz... Vinde adoremos!”. Essa aclamação deve ser vista em relação com a da Vigília pascal: “Eis a luz de Cristo!”. Essa relação faz com que o mistério da morte não seja entendido como parte independente da ressurreição.
            O desvio que esse rito introduz na celebração pascal é a passagem da contemplação para a representação. Enquanto no início os fieis contemplavam o mistério da morte do Senhor por meio da escuta da palavra, agora passa-se a uma espécie de representação visível que desembocará na Via Sacra.
            Outro desvio foi em relação à comunhão neste dia. Com a introdução da comunhão, esqueceu-se o significado do jejum intrapascal que só terminava com a comunhão na noite de Páscoa. No século VIII, em Roma, o papa e os diáconos não comungam. Quem desejar comungar deve buscar outras igrejas de Roma e comungar do que tivesse sobrado da celebração do dia anterior.
            Em relação ao Sábado Santo, o principal desvio foi a antecipação sempre mais gritante da hora da Vigília. A partir do século IV, por diversos motivos, o horário da Vigília foi sendo cada vez mais antecipado. Entre os séculos VII e X o início da Vigília (que já não era vigília) era marcado para 13 ou 14 horas. Advertia-se, no entanto, para que o Glória não fosse cantado antes da primeira estrela despontar no céu. Assim, o povo não seria despedido antes da meia-noite. Após o século XII aconteceram mais intervenções para antecipar a celebração e a partes de São Pio V começou-se a celebrar na hora terceira (9h).
            Essa mudança de horário da Vigília ocasionou, evidentemente, a quebra da unidade do Tríduo pascal. Além disso, existia um contraste entre os textos litúrgicos e o momento em que se dava a celebração.
            Somente no pontificado de Pio XII o Tríduo pascal começa a reconquistar sua liberdade. Foi permitida a celebração do novo Ordo do Sábado Santo e da Vigília pascal por três anos ad experimentum. A experiência deu certo e houve muita adesão. Por isso, em 1957 o papa Pio XII aprovou definitivamente o novo Ordo que colocava a missa “in Cena Domini” na noite da Quinta-feira Santa, o solene ato da Sexta-feira Santa por volta das 15h e não depois das 18h e a Vigília pascal na noite do Sábado Santo.

3 Tríduo pascal: dias e celebrações

3.1 A missa vespertina “In Cena Domini”

            A noite da Quinta-feira Santa, a partir da concepção judaica de tempo já comentada, faz parte do primeiro dia do Tríduo pascal, isto é, da Sexta-feira Santa. Foi nesta noite que Cristo celebrou a Última Ceia, antecipação de sua entrega na Cruz, realizou o lava-pés, gesto de amor e serviço, sofreu a angústia e foi preso.
            Este dia celebra sacramentalmente aquilo que o Tríduo celebra historicamente. Temos aí duas dimensões do mistério pascal: histórica e ritual. Segundo Bergamini, o que “deve ser bem sublinhado a respeito da celebração da missa ‘in Cena Domini’ é a ‘dimensão ritual’, ou seja, o rito memorial, que torna presente o mistério pascal de Cristo”.[13]
            Deve-se cuidar para que não se apresente essa missa como a “comunhão pascal”. Como já foi visto, a verdadeira Eucaristia da Páscoa é a da Vigília do sábado à noite.
            A celebração da Páscoa, que é fundamentalmente a celebração do rito eucarístico, está ligada intimamente à páscoa história. Tanto a judaica como a cristã celebram um fato histórico e esperam um cumprimento definitivo. Na história da salvação devem ser consideradas quatro páscoas: a Páscoa do Senhor, a Páscoa dos judeus, a Páscoa de Cristo e a Páscoa da Igreja.
            Percebe-se nas rubricas do Missal romano um caráter fortemente comunitário em relação a esta celebração. Orienta-se a participação de todo o povo, ministros e fiéis, e proíbe-se, segundo antiga tradição, toda missa sem povo. O desejo da Igreja é que todas as atenções se voltam para esta celebração, memorial do sacrifício de Cristo, e que o povo de Deus seja o sujeito desta celebração.
            A liturgia da Palavra dessa celebração funciona como uma “dobradiça” entre a páscoa do Antigo Testamento e a cristã. Temos a narrativa da instituição da Páscoa, o sentido pascal da ceia e cristã e, por último, o Evangelho que traz o gesto de serviço realizado por Jesus na última Ceia.
            O rito do lava-pés já existia na época de Agostinho. Desapareceu por um tempo e ressurgiu nos mosteiros como lava-pés dos pobres e dos irmãos do mosteiro. O missal de São Pio V previa esse rito no fim da missa; pela reforma de Pio XII, ele passa para depois da homilia. Trata-se de gesto muito eloquente. Uma advertência, entretanto, faz-se necessária:

O rito deve ajudar a compreender melhor o grande e fundamental mandamento da caridade fraterna. Do contrário, se for apenas uma representação mais ou menos cênica, sentimental e isenta de autenticidade, é melhor deixa-la de lado e substitui-la por algum gesto mais verdadeiro e concreto de exercício de caridade; por exemplo, a apresentação das ofertas para os pobres, no início da liturgia eucarística.[14]

           
            Os textos da oração da Igreja nesta noite enfatizam a instituição da Eucaristia, do sacerdócio e o mandamento do amor, tudo num tom de profunda alegria. São previstas algumas variantes no texto do Cânon I para esta noite. Sua intensão é sublinhar o “hoje” da liturgia. O “hoc est, hodie” é talvez o melhor exemplo dessas variantes.
            Terminada a liturgia eucarística, os dons pré-santificados para a celebração do dia seguinte são transladados solenemente para uma capela ou altar secundário para adoração dos fiéis. Essa adoração é costume antiquíssimo, junto com o jejum que deveria lembrar o tempo que Jesus passou no sepulcro. Irineu e Agostinho já deu testemunho desse costume.
            Em respeito à significação própria dos dias que compõem o Tríduo pascal a adoração deve ser encerrada meia-noite ou, se continua-se depois desse horário, sem nenhuma solenidade. A adoração da Quinta-feira Santa deve ser feita sempre com o tabernáculo fechado e nunca deve-se usar o ostensório.
           
3.2 Sexta-feira Santa, “Paixão do Senhor”

            A liturgia não considera a Sexta-feira Santa como um dia de luto ou de pranto, mas como “dia de amorosa contemplação” do sacrifício redentor de Cristo. Não se trata de um funeral, mas da celebração da morte vitoriosa do Senhor. Sempre que possível, o ato litúrgico deve ser celebrado às 15h, hora da morte de Jesus.
            O rito deste dia compõe-se de três partes: liturgia da palavra, adoração da cruz e comunhão.
            A liturgia da palavra desta celebração conserva a forma mais antiga de celebração da palavra. Sem muitos ritos introdutórios, colocam-se os fiéis à escuta da Palavra. Na primeira leitura temos o quarto cântico do servo sofredor que é o mais rico do ponto de vista teológico. O servo sofredor não é vítima de suas culpas, mas está nessa condição por sofrimento “vigário”. Na segunda leitura, temos descrição de Cristo como sumo-sacerdote, digno de toda confiança e fidelidade. A atitude de obediência de Cristo é enfatizada e sua mediação também recebe certo relevo.
No Evangelho, temos a narrativa da paixão segundo João. Dois traços de Jesus sobressaem nesta paixão: a completa liberdade de Cristo e sua perfeita consciência. Temos também aí, como influxo da morte de Cristo, um caráter sacerdotal e o prolongamento sacramental. Ainda é possível perceber a relação existente entre o Calvário e Caná, onde Maria também é chamada de “Mulher” e ouve falar de uma hora anunciada que se cumpre no Calvário. Também há uma relação entre Eva e Maria. A primeira ao lado de Adão, causa de morte; a segunda, ao lado de Cristo, que é causa de salvação para todos.
            Após as leituras, passa-se para a solene oração dos fiéis. Esta oração da Sext-feira Santa é de muita importância para a Igreja, conforme nos diz Adam:

A “grande oração universal” é uma rocha primitiva da Igreja dos primeiros séculos, que se conservou até nosso dias, enquanto as demais orações dos fiéis, usuais em todas as celebrações de Roma, em outros tempos, e conhecidas também sob o título de “oração comum” ou “oração universal”, caíram em desuso e no esquecimento durante muitos séculos e só foram reintroduzidas pelo Vaticano II.[15]

A atual estrutura dessa oração é proveniente do século V, mas acredita-se que seu conteúdo seja bem anterior. Compõe-se de um convite à oração por parte do sacerdote, um tempo de silêncio, e a oração propriamente dita. O costume de ajoelhar-se e levantar-se em cada oração pode ser mantido. O papa Paulo VI fez mudanças importantes no texto dessa oração. Substituiu, por exemplo, a expressão “hereges e cismáticos” por “todos os irmãos que acreditam em Cristo”.
            No momento em que se iniciaria a liturgia eucarística, tem lugar o rito da adoração da cruz. Neste dia não se celebra a Eucaristia: as atenções se voltam para o sacrifício cruento de Cristo e não para seu rito memorial. No entanto, deve-se esclarecer aos fiéis que “o verdadeiro mistério da cruz torna-se presente na missa e não na veneração da imagem do crucifixo”.[16]
            O rito consiste na apresentação cruz com a aclamação “Eis o lenho da cruz, do qual pendeu a salvação do mundo” a qual o povo responde “Vinde adoremos!” e à adoração manifestada pela genuflexão, pelo beijo ou outro sinal adequado.
            Para Alioga, “as origens históricas deste rito devem sem dúvida sem dúvida ser buscadas em Jerusalém, onde o encontramos já no séc. IV, sendo-nos conhecido graças a Egéria e Cirilo de Jerusalém”.[17] Com o tempo, este rito foi sendo assumido por diversas Igrejas assumindo, muitas vezes um caráter dramático diferente da sobriedade das Igrejas de Jerusalém e de Roma.
            Na própria adoração da cruz já se encontram elementos que relacionam a morte de Jesus com sua ressurreição. Trata-se de uma celebração épica da vitória de Cristo sobre o pecado, por meio da cruz.
            Depois da adoração da cruz passa-se para a comunhão. Essa parte da celebração é, sem dúvida, a que mais causou discussões ao longo dos séculos. De fato, sabe-se que na Igreja de Roma, até o século VII não se comungava neste dia. Há uma justificativa muito bonita do papa Inocêncio I: nestes dois dias os apóstolos estavam escondidos e com medo e certamente jejuaram. Por isso criou-se a tradição de não celebrar a Eucaristia neste dia.
            Com a reforma realizada no pontificado de Pio XII introduziu-se a comunhão na celebração da Sexta-feira Santa, não sem grandes discussões. Isso porque essa prática aumenta consideravelmente o risco de desfocar a atenção do ponto culminante da Páscoa: a participação à Eucaristia na Vigília Pascal.
            A celebração encerra-se com uma oração e uma benção sobre o povo. Pede-se a benção de Deus para que os que celebraram a morte de Cristo participem de sua ressurreição.
            Por tradição muito antiga, a Sexta-feira Santa é dia de jejum. Tertuliano e Hipólito nos informam que em Roma este jejum era observado na sexta e no sábado, de maneira muito rigorosa e só se encerrava com a comunhão na noite de Páscoa. Outros gestos também eram assumidos como participação da Igreja na morte do Senhor: não se dava o beijo da paz e se ajoelhava.
            Demonstração do rigor destes dias de jejum encontra-se nas palavras de Hipólito:

Na Páscoa, ninguém come qualquer coisa antes que seja feita a oblação e para aquele que o fizer diferentemente o jejum não será reconhecido. A mulher grávida e quem está doente e não pode jejuar dois dias, vista a necessidade, jejuará somente no sábado, contentando-se com pão e água.[18]

3.3 Sábado Santo, “Sepultura do Senhor”

            O Sábado Santo é o dia em que os fiéis são convidados a ficar juntos ao sepulcro, contemplando o mistério da paixão e morte do Senhor e vivendo a expectativa ressurreição. É dia alitúrgico (sem celebração eucarística) no qual o povo é convidado a rezar a Liturgia das Horas, diferentemente da prática antiga, em que nada se rezava.
            Neste dia celebra-se o mistério da descida de Cristo à mansão dos mortos. Este artigo foi inserido tardiamente no Credo, mas os historiadores não hesitam em defender sua origem na fé apostólica romana.
            Este ponto de fé tem alguns significados importantes: a) Jesus morreu realmente porque é realmente homem. O fato de Jesus ter sido sepultado oficialmente é muito importante e não por acaso está na forma mais antiga do kérygma. b) A solidariedade de Jesus, morto na cruz, com todos os homens mortos. Segundo o grande teólogo Hans Urs von Balthasar, “o estar do Redentor com os mortos, ou melhor, com aquela morte que somente faz com que os mortos sejam realmente tais, é a última consequência da missão redentora recebida do Pai”.[19] c) O “caminho dos mortos” afirma-se a partir da fé na ressurreição, ou seja, para Cristo, “descer à mansão dos mortos equivale a enfrentar a morte, na esperança de que o Pai a vencerá, não somente para ele, mas para todos”.[20] d) “Confessar que Jesus desceu à mansão dos mortos, equivale a confessar um evento salvífico que ilumina também hoje, a situação do homem diante de Deus e o livra da perdição”.[21]
            O mistério deste dia santo deve ser vivido no silêncio e na meditação. A Igreja bizantina convida os fiéis a estas atitudes com as seguintes palavras: “Permaneça mudo todo mortal e fique com temor e tremor; não medite em nada que seja terreno”. Neste dia,

Todo fiel é chamado à contemplação, nutrindo o coração com os afetos sugeridos pela Liturgia das Horas: a tranquilidade na paz de Deus, o repouso na esperança, a plena confiança na palavra de Deus, a certeza do cumprimento das promessas divinas e o abandono ao julgamento de Deus: ele glorificará o justo e lhe dará a plenitude da vida.[22]

            A Igreja não deve esquecer que a Sexta-feira Santa e o Sábado Santo, constituíram a crise mais profunda da fé a da esperança dos apóstolos. Nestes dias, somente aquela criatura mais próxima do Senhor acreditou: Maria. Por isso, diz-se que nestes dois dias toda a fé da Igreja está recolhida em Maria. Daí a consagração do sábado como dia dedicado à Maria, dia que antecipa imediatamente o dies dominicus.

3.4 Domingo de Páscoa: Vigília pascal na Noite Santa e Missa do dia

            A Vigília pascal é o coração de todo o ano litúrgico. Poucas celebrações são ricas de conteúdo e simbolismo como a desta noite.
            Alguns pontos são de fundamental importância para a compreensão do significado e valor da Vigília pascal: a) Na celebração da páscoa judaica estava presente o aspecto memorial, com o qual se celebrava as maravilhas realizadas por Deus, e também o aspecto escatológico, olhando em direção à vinda do Messias libertador. b) Os cristãos nesta noite vigiam para celebrar toda a economia da salvação, da criação à parusia. Além disso, desde o século II, o caráter comemorativo prevalece no conteúdo litúrgico e teológico da Páscoa. c) O objeto da expectativa escatológica é essencialmente ultraterreno. Esta atitude de expectativa deve caracterizar toda a vida do cristão. d) A realidade da “passagem” celebrada pela Páscoa dá grande importância ao caráter noturno da Vigília pascal. O texto do Exultet é prova dessa importância. e) “As primeiras comunidades cristãs experimentavam tão vivamente o mistério desta noite a ponto de considerar que não era permitido dormir. Todos velavam na expectativa do Cristo Ressuscitado”.[23]
            No Missal de Paulo VI, a Vigília pascal está dividida em quatro partes: solene início da Vigília ou “lucernário”; liturgia da palavra; liturgia batismal; liturgia eucarística. Embora separados, estes ritos formam uma unidade e todos convergem para a Eucaristia como momento culminante.
            A primeira parte da celebração, a celebração da luz, celebra o Cristo, luz do mundo. Nele, todos somos chamados a ser luz. Neste momento, o sinal que resplandece é o círio pascal aceso em meio às trevas.

O círio pascal tem suas antiquíssimas raízes certamente no costume (observado em Roma) de iluminar a noite com muitas lâmpadas. Nestas lâmpadas via-se simbolizado o Senhor ressuscitado de dentro da noite da morte. Os dois círios originais do tamanho de um homem tornaram-se, afinal, um único, ao qual a liturgia galicana reservava uma benção especial e que os teólogos francos e galicanos, com seu gosto pelas formas alegorizantes, enriqueceram com elementos carregados de simbolismos.[24]

Apesar de toda a beleza deste rito, deve-se lembrar que é apenas um rito inicial. Não deve ser valorizado excessivamente. O mais importante não é a benção do fogo, mas o significado pascal que ela assume. Já com o círio aceso, procede-se a procissão que representa o seguimento a Cristo, Luz do mundo, e a caminhada do povo no deserto guiado pela coluna de fogo.
Esta parte da celebração é encerrada com o canto do Exultet. Trata-se de um magnífico canto, atribuído a Santo Ambrósio, que anuncia a mensagem da ressurreição e celebra as maravilhas realizadas por Deus nesta noite santa.
            Passa-se em seguida para o segundo momento da celebração: a liturgia da palavra. A Igreja medita as maravilhas realizadas ao longo de toda a história da salvação e a luz do círio dá lugar à realidade de Cristo, luz do mundo, presente em sua palavra lida na Igreja. Esta é parte fundamental da Vigília pascal. Por isso, sempre que possível, sejam lidas as nove leituras propostas para este dia. Quando não é possível, proclame-se ao menos três do Antigo Testamento, sem nunca excluir a Travessia do Mar Vermelho.
            O modo como se dá a leitura da palavra nesta celebração merece especial atenção. A Escritura é lida, assim como pede a Tradição, meditando e orando. Após cada leitura deve ser observado um momento de silêncio após as leituras e salmos e o presidente resume toda a oração com a prece conclusiva.
            Dois momentos são importantes nesta parte da celebração: o canto do Glória, depois da sétima leitura e o tão esperado Aleluia, que não é cantado durante toda a Quaresma. O Evangelho é diferente em cada um dos três ciclos anuais de modo a se ler os textos de todos os sinóticos referentes à ressurreição.
            O terceiro momento da Vigília pascal é a liturgia batismal. Como já foi dito anteriormente, desde os primórdios a Igreja sempre relacionou a celebração do Batismo com a noite da Páscoa. A teologia paulina do batismo como imersão na morte de Cristo foi sendo assumida, assim como o aspecto do ressurgimento com Cristo para a vida.
            Os autores do século II ainda não trazem a tipologia batismal fundada na relação Passagem do Mar Vermelho e morte-ressurreição de Cristo. Para eles, é mais forte o aspecto eclesial do batismo que o vê como banho nupcial, sacramento das núpcias com Cristo. São Basílio justificará a celebração do Batismo na noite de Páscoa afirmando que neste dia se celebra a ressurreição e que o Batismo é força de ressurreição.
            Temos que perceber a relação entre o Batismo e a Paixão de Cristo. “Não devemos esquecer que, sempre na catequese mais antiga, o binômio Batismo-Paixão estava acoplado com o Batismo martírio, a ponto de serem chamados ‘dois batismos’: de água e de sangue”.[25]
             A liturgia batismal é colocada pelo Missal de Paulo VI como abertura dos sacramentos pascais, depois da homilia. Na atual estrutura da Vigília, essa liturgia tem a seguinte ordem: canto da ladainha de todos os santo; benção da água batismal, ou, onde não há fonte, benção da água lustral; celebração do batismo (se há batizandos); renovação das promessas batismais.
            Nesta parte da celebração, o elemento de destaque é a água. O sacerdote a abençoa com uma bela oração tira, principalmente, do sacramentário gelasiano. A benção da fonte quer significar que a graça do Batismo vem do Espírito Santo e não da água como elemento material. Símbolo disso é a tripla imersão do círio pascal na fonte, acompanhada de uma oração epiclética.
            A renovação das promessas batismais é de muita importância nesta celebração. No entanto não deve-se esquecer que é na participação na Eucaristia que se dá a plena adesão batismal. Por isso não se deve insistir muito na importância desta promessas, mas na participação na Eucaristia. Estas promessas se fazem no contexto da celebração eucarística.
            Chegamos, por fim, ao coração da Vigília pascal: a celebração eucarística. De fato, “tudo o que a Igreja realiza durante todo o ano litúrgico converge para esta missa e parte desta missa pascal”.[26] Trata-se da maior ação de graças que a Igreja pode elevar a Deus por ele ter lhe dado seu filho morto e ressuscitado.
           
A Páscoa é o momento em que teve início a verdadeira eucaristia. Por isso, o mistério da noite pascal também concentra-se sobre a eucaristia, que Cristo não apresenta mais sozinho, mas juntamente com a sua Igreja. Esta participa da Eucaristia, que inaugura a grande solenidade de Pentecostes, na qual a Igreja remida dá ininterruptamente graças ao Pai junto com o Filho.[27]

Quando a Vigília pascal se estendia por toda a noite não havia celebração no Domingo de Páscoa. Aqui mais uma vez vale salientar que a Eucaristia pascal é a celebrada na Vigília, tanto que a celebrada no domingo é a “segunda missa da Páscoa”. Para Adam,

É provável que na maioria das paróquias os que tomam parte nesta missa do dia não tenham participados das outras celebrações do Tríduo Pascal. Por isso torna-se tanto mais necessário incutir vivamente nos fiéis a consciência da unidade do mistério pascal de salvação, isto é, a consciência da morte e ressurreição de Cristo como um todo, tal como fazem o prefácio da Páscoa e a antífona de comunhão.[28]

Os possíveis esforços no sentido de repetir algumas partes das celebrações pascais, em vez de ajudar, só poderiam causar prejuízos à Vigília pascal.
            A liturgia da palavra deste dia contém o kérigma pascal. Celebra o evento pascal como “dia de Cristo Senhor”. Além desse aspecto kerigmático as leituras trazem também o apelo para que se assuma vida nova em Cristo ressuscitado. Tem-se um discurso de Pedro como intérprete mais autorizado da pregação apostólica, um apelo de Paulo para que se busquem as coisas do alto e o evento da ressurreição testemunhado por Maria Madalena e dois dos apóstolos. A ressurreição significa que “somente Cristo levou a termo a verdadeira vocação humana, porque é Homem-Deus”.[29]

4 Indicações pastorais da Congregação para o Culto Divino

            Nesta última parte de nosso trabalho, limitamo-nos a reproduzir alguns trechos da Carta circular da Congregação para o Culto Divino, preparação e celebração das festas pascais,[30] de 16 de janeiro de 1988. Nesta carta, intitulada Paschalis Sollemnitatis, a Congregação dá orientações gerais para estas celebrações. Cada conferência episcopal pode fazer alterações naquilo que lhe compete, assim como os ordinários dentro de suas competências.
            Em relação ao Tríduo, a carta traz os seguintes elementos:

A Igreja celebra todos os anos os grandes mistérios da redenção humana, desde a missa vespertina da Quinta-feira “In Cena Domini” até às vésperas do domingo da ressurreição. Este espaço de tempo é justamente chamado o “tríduo do crucificado, do sepultado e do ressuscitado” e também tríduo pascal, porque com a sua celebração se torna presente e se cumpre o mistério da Páscoa, isto é, a passagem do Senhor deste mundo ao Pai. Com a celebração deste mistério, por meio dos sinais litúrgicos e sacramentais, associa-se em íntima comunhão com Cristo, seu Esposo (Paschalis Sollemnitatis, 38).

Para o desenvolvimento conveniente das celebrações do tríduo pascal, requer-se um suficiente número de ministros e de ajudantes, que devem ser diligentemente instruídos sobre o que deverão fazer. Os pastores cuidem de explicar aos fiéis, do melhor modo possível, o significado e a estrutura dos ritos das celebrações, e de os preparar para uma participação ativa e frutuosa (Idem, n. 41).

É muito conveniente que as pequenas comunidades religiosas, quer clericais, quer não, e as outras comunidades laicais participem nas celebrações do tríduo pascal nas igrejas maiores. De igual modo, quando em algum lugar é insuficiente o número dos participantes, dos ajudantes e dos cantores, as celebrações do tríduo pascal sejam omitidas e os fieis reúnam-se noutra igreja maior (Idem, n. 43).

A fim de que os alunos dos seminários possam “viver o mistério pascal de Cristo, de modo que saibam iniciar nele o povo que lhes será confiado”, é necessário que recebam uma plena e completa formação litúrgica. É muito oportuno que os alunos, durante os anos da sua preparação no seminário, façam experiência das formas mais ricas de celebração das festas pascais, especialmente daquelas presididas pelo bispo (Idem, id.).

4.1 Missa vespertina na Ceia do Senhor

Toda a atenção da alma deve estar voltada para os mistérios que, sobretudo nesta missa, são recordados, isto é, a instituição da eucaristia, a instituição da ordem sacerdotal e o mandamento do Senhor sobre a caridade fraterna: tudo isso deve ser explicado na homilia (Paschalis Sollemnitatis, n. 45)

Segundo antiquíssima tradição da Igreja, neste dia são proibidas todas as missas sem o povo (Idem, n. 47).

Antes da celebração, o tabernáculo deve estar vazio. As hóstias para a comunhão dos fiéis devem ser consagradas na mesma celebração da missa. Consagrem-se nesta missa hóstias em quantidade suficiente para este dia e para o dia seguinte (Idem, n. 48).

O lava-pés que, por tradição, é feito nestes dias a alguns homens escolhidos, significa o serviço e a caridade de Cristo, que veio “não para servir, mas para servir”. Convém que esta tradição seja conservada e explicada no seu significado próprio” (Idem, n. 51).

Concluída a oração após a comunhão, forma-se a procissão que, passando pela igreja, acompanha o Santíssimo Sacramento ao lugar da reposição. (...) A procissão e a reposição do Santíssimo Sacramento não podem ser feitas nas igrejas em que na Sexta-feira Santa não se celebra a paixão do Senhor (Idem, n. 54).

O sacramento seja conservado num tabernáculo fechado. Nunca se pode fazer a exposição com o ostensório. O tabernáculo ou o cibório não deve ter a forma de um sepulcro (Idem, n. 55).

Concluída a missa é desnudado o altar da celebração. Convém cobrir as cruzes da igreja com um véu de cor vermelha ou roxa, a não ser que já tenham sido veladas no sábado antes do V domingo da Quaresma. Não se podem acender velas ou lâmpadas diante das imagens dos santos (Idem, n. 57).

4.2 Celebração da Sexta-feira Santa

A Igreja, seguindo uma antiquíssima tradição, neste dia não celebra a eucaristia; a sagrada Comunhão é distribuída aos fiéis só durante a celebração da paixão do Senhor; aos doentes, impossibilitados de participar desta celebração, pode-se levar a comunhão a qualquer hora do dia (Paschalis Sollemnitatis, n. 59).

Está proibido celebrar neste dia qualquer sacramento, exceto os da Penitência e da Unção dos Enfermos (Idem, n. 61).

A celebração da paixão do Senhor deve ser realizada depois do meio-dia, especialmente pelas três horas da tarde. Por razões pastorais pode-se escolher outra hora mais conveniente, para que os fiéis possam reunir-se com mais facilidade: por exemplo, desde o meio-dia até o entardecer, mas nunca depois das vinte e uma horas (Idem, n. 63).

O sacerdote e os ministros, feita a reverência ao altar, prostram-se: esta prostração, que é um rito próprio deste dia, seja conservada diligentemente, pois significa não só a humilhação do “homem terreno”, mas também a tristeza e a dor da Igreja (Idem, n. 65).

A oração universal deve ser feita segundo o texto e a forma transmitidos pela antiguidade, com toda a amplitude de intenções, que expressam o valor universal da paixão de Cristo, pregado na cruz para a salvação do mundo inteiro (Idem, n. 67).

Apresente-se a cruz à adoração de cada um dos fiéis, porque a adoração pessoal da cruz é um elemento muito importante desta celebração. No caso de uma assembleia muito numerosa, use-se o rito da adoração feita contemporaneamente por todos. Use-se uma única cruz para a adoração, tal como o requer a verdade do sinal (Idem, n. 69).

Pela sua importância pastoral, sejam valorizados os pios exercícios, como a Via-sacra, as procissões da paixão e a memória das dores da bem-aventurada Virgem Maria. Os textos e os cânticos desses pios exercícios correspondam ao espírito litúrgico deste dia. O horário desses pios exercícios sejam de tal modo dispostos, que apareça claro que a ação litúrgica, por sua mesma natureza, está acima dos pios exercícios (Idem, n. 72).

4.3 O Sábado Santo

Durante o Sábado Santo a Igreja permanece junto do sepulcro do Senhor, meditando a sua paixão e morte, a sua descida aos infernos, e esperando na oração e no jejum a sua ressurreição. Recomenda-se com insistência a celebração do Ofício das Leituras e das laudes com a participação do povo (Paschalis Sollemnitatis, n. 73).

Neste dia a Igreja abstém-se absolutamente do sacrifício da missa. A sagrada Comunhão só pode ser dada como viático. Não se conceda a celebração de matrimônios nem a administração de outros sacramentos, exceto os da Penitência e a Unção dos Enfermos (Idem, n. 75).

4.4 Celebração da Vigília pascal

Segundo uma antiquíssima tradição, esta noite é “em honra do Senhor”, e a vigília que nela se celebra, comemorando a noite santa em que o Senhor ressuscitou, deve ser considerada como “mãe de todas as santas vigílias” (Paschalis Sollemnitatis, n. 77).

“Toda a Vigília pascal seja celebrada durante a noite, de modo que não comece antes do anoitecer e sempre termine antes da aurora de domingo”. Esta regra deve ser interpretada estritamente (Idem, n. 78).

Na medida em que for possível, prepare-se fora da igreja, em lugar conveniente, o braseiro para a benção do fogo novo, cuja chama deve ser tal que dissipe as trevas e ilumine a noite (Idem, n. 82).

Prepare-se o círio pascal que, no respeito da veracidade do sinal, “deve ser de cera, novo cada ano, único, relativamente grande, nunca artificial, para poder recordar que Cristo é a luz do mundo” (idem, id.).

O renovado Ordo da Vigília compreende sete leituras do Antigo Testamento, tomadas dos livros da lei e dos profetas, já utilizadas com frequência nas antigas tradições litúrgicas tanto do Oriente como do Ocidente; e duas leituras do Novo Testamento, tomadas das cartas dos apóstolos e do Evangelho. Desta maneira, a Igreja “começando por Moisés e seguindo pelos profetas”, interpreta o mistério pascal de Cristo. Portanto, na medida em que for possível, leiam-se todas as leituras de maneira que se respeite completamente a natureza da Vigília pascal, que exige uma certa duração (idem, n. 85).

A terceira parte da Vigília é constituída pela liturgia batismal. A Páscoa de Cristo e nossa é agora celebrada no sacramento. Isto pode ser expresso de maneira mais completa nas igrejas que têm a fonte batismal, e sobretudo quanto tem lugar a iniciação cristã dos adultos ou, pelo menos, o batismo de crianças (Idem, n. 88).

Recomenda-se não celebrar apressadamente a liturgia eucarística; é muito conveniente que todos os ritos e as palavras que os acompanham alcancem toda a sua força expressiva (Idem, n. 91).

4.5 O dia da Páscoa

A missa do dia da Páscoa deve ser celebrada com grande solenidade. Em lugar do ato penitencial, é muito conveniente fazer a aspersão com a água benzida durante a celebração da Vigília (Paschalis Sollemnitatis, n. 97).

Conserve-se, onde ainda está em vigor, ou, segundo a oportunidade, instaure-se a tradição de celebrar as vésperas batismais do dia da Páscoa, durante as quais ao canto dos salmos se faz a procissão à fonte (Idem, n. 98).



           

           
           
           




[1] Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, n. 18 em Missal Romano, São Paulo: Paulus, 2012, p. 103-104.
[2] ALIAGA, E. O tríduo pascal em BORÓBIO, D. (org), A celebração na Igreja. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 94.
[3]  Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, n. 18 em Missal Romano, São Paulo: Paulus, 2012, p. 104.
[4] BERGAMINI, A., Cristo, festa da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 315-316.
[5] ALIAGA, E. op. cit., p. 95.
[6] Haggada’ pascal 2, 8-10: Constituição do Rabi Gamaliel em CANTALAMESSA, R., La Pasqua nella Chiesa antica, Turim, 1978, p. 11-13.
[7] ALIAGA, E. op. cit., p. 97.
[8] ALIAGA, E. op. cit., p. 97-98.
[9] ADAM, A., O ano litúrgico: sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Edições Paulinas, 1982, p. 59.
[10] BERGAMINI, op. cit., p. 306.
[11] Idem, id.
[12] Idem, p. 307.
[13] Idem, p. 316.
[14] Idem, p. 320-321.
[15] ADAM, op. cit., p. 74.
[16] BERGAMINI, op. cit., p. 335.
[17] ALIOGA, op. cit., p. 109.
[18] Hipólito de Roma, Traditio apostolica, 33 em Bergamini, op. cit., p. 337, nota 10.
[19] BALTHASAR, H. U., loc. cit., p. 316 em BERGAMINI, A., op. Cit., p. 343.
[20] Idem, id.
[21] DUQUOC, C., Cristologia, Tomo II, Il Messia, cap. I, 4, Discesa agli inferni, Queriniana, Brescia, 1972, p. 371 em BERGAMINI, op. Cit., p. 344.
[22] BERGAMINI, op. cit., p. 348.
[23] Idem, p. 356.
[24] ADAM, op. cit., p. 79.
[25] BERGAMINI, op. cit., p. 367.
[26] Idem, p. 369.
[27] CASEL, O., Il mistério dell’Ecclesia, Cittá Nuova, Roma, 1965, p. 348 em Idem, id.
[28] ADAM, op. cit., p. 85.
[29] BERGAMINI, op. cit., p. 375.