quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Uma riqueza guardada em vasos de barro


Pe Rodrigo José Arnoso Santos, CSSR




  
            A Igreja após celebrar o Concílio Vaticano II, assistiu ao nascimento dos seus novos livros litúrgicos. Estes nascem como o resultado de uma profunda reflexão, sobre a necessidade de uma renovação da vida litúrgica da Igreja, a qual deveria ser compreendida pela comunidade eclesial, como cume e fonte de toda a vida cristã: “a liturgia é o cume para o qual tende toda a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de que promana sua força”[1].  Para atingir tal propósito conciliar, muitas comissões foram formadas e coube a estas, pensarem livros, capazes de serem adaptados as diversas culturas, onde a Igreja se faz presente, com a árdua tarefa de tornar o Cristo conhecido e amado, para que Nele todos os povos tenham vida.
            Os estudos sobre o Vaticano II, nos permitem afirmar que a grande preocupação deste Concílio, não foi a de apresentar definições dogmáticas, mas a de motivar em tempos modernos, um profícuo diálogo entre Igreja e uma sociedade marcada por rápidas transformações. Tal princípio perseguido pelos padres conciliares, tinha por escopo promover uma renovação na vida teológica, pastoral e litúrgica da Igreja. É mister relembrar, que todo processo de renovação da vida da Igreja, começa com a publicação da Constituição Conciliar sobre a liturgia, denominada de Sacrosanctum Concilium (SC). Este documento conciliar deve ser compreendido como o ponto de chegada e o ponto de partida, para todo o processo de renovação da vida litúrgica da Igreja. Ponto de chegada por representar uma síntese de todo o processo de reflexão, sobre a necessidade da renovação da vida litúrgica da Igreja, iniciado pelos membros do Movimento Litúrgico, que preocupavam-se com o resgate do sentido teológico da liturgia. Ponto de partida, por apresentar as orientações para uma sana renovação da vida litúrgica da Igreja, com o escopo de motivar uma participação ativa e consciente de toda comunidade cristã na ação litúrgica.[2]
            Com escopo de promover uma participação ativa e conciente umas da preocupações dos padres conciliares foi a de motivar a revisão e renovação dos livros litúrgicos. “Revejam-se, quanto antes, os livros litúrgicos das diversas regiões, com o auxílio de peritos e de acordo com os bispos”[3]. Porém, a pergunta que emerge neste ponto é: o que é um livro litúrgico? A resposta a tal indagação encontramos em um artigo de I. Scicolone, “Libros Litúrgicos”:

Por livro litúrgico, em sentido estrito, entende-se um livro que serve para a celebração litúrgica, tendo sido escrito com vistas a ela. Em sentido mais amplo, é o livro que, embora não tendo sido escrito com vistas a celebração contêm textos e ritos de uma celebração, tanto se foram usados como se não o foram. Além destas fontes litúrgicas diretas, existem também os escritos que nos informam sobre o fato litúrgico, sem por isso ser livros litúrgicos, como textos de história, escritos dos padres, documentos do magistério.[4]

            Tal definição apresentada por Scicolone, nos permite afirmar que o livro litúrgico deve ser tratado com zêlo e respeito, pois nas páginas que formam o mesmo, encontramos o registro da lex orandi, lex credendi e lex vivendi da comunidade eclesial. “O livro litúrgico deve ser respeitado e até venerado. É ao mesmo tempo, uma fonte para a história da liturgia e, particularmente, do rito que contém”.[5] O cuidado e a veneração destes livros se dá pelo fato de que, por meio destes, durante a celebração litúrgica Deus se comunica com a assembleia, que ele mesmo reuniu para bendizê-lo e adorá-lo.
            Deste modo podemos intuir que as linhas que compõem um livro litúrgico, nos indicam um caminho mistagógico, o qual deve ser percorrido por cada um dos membros da comunidade cristão, com o escopo de um encontro pessoal com o mistério da nossa fé, o Cristo, caminho pelo qual chegamos ao Pai, iluminados pela presença santificadora do Espírito Santo, força que faz mover a vida litúrgica da Igreja. A compreensão do livro litúrgico como um caminho mistagógico, nos possibilita contemplar a celebração litúrgica, como um momento oportuno para se educar os cristãos, em vista de uma vivência madura da fé. Pois, “o fim da liturgia é a santificação do homem: de fato, é por meio da santidade de vida que se rende glória a Deus”.[6]
            As comissões responsáveis pela revisão e elaboração dos novos livros litúrgicos, segundo as orientações do Concílio Vaticano II, souberam criativamente unir os mais belos textos eucológicos da Tradição Litúrgica da Igreja, com a elaboração de novos textos. Isto nos permite afirmar, que um livro litúrgico é uma grande riqueza guardada em vasos de barro. Todavia, esta riqueza não é conhecida em profundidade pelas nossas comunidades cristãs. Primeiro porque aqueles, que são os responsáveis em  presidir a assembleia cristã, muitas vezes desconhecem o conteúdo teológico, litúrgico e pastoral presentes nestes livros. Segundo porque para muitos criatividade litúrgica, significa necessariamente abandono dos livros litúrgicos. Os que assim pensam, comprovam que não foram formados na ars celebrandi, ou seja, na arte de bem celebrar.
            O conhecimento dos elementos que compõem um livro litúrgico auxilia uma comunidade cristã a viver uma liturgia inculturada, expressão viva de uma comunidade que se reúne para ouvir, meditar e alimentar-se da Palavra de Deus. Sabemos que cada assembleia celebrante, tem a sua fisionomia, pois cada comunidade tem a sua história e se reúne para celebrar, trazendo consigo situações nas quais se encontra mergulhada. “Cada comunidade imprime na liturgia um caráter particular: não pode existir uma liturgia universalmente assética, que não assuma o rosto singular de uma comunidade concreta”.[7] Uma liturgia que não assume a fisionomia de uma comunidade, não consegue exercer a sua função mistagógica, ou seja, de introduzir toda assembleia celebrante, no mistério pascal celebrado e atualizado por meio da celebração litúrgica.  
            Conhecer para bem celebrar, eis aqui a chave para resgatarmos em nossas comunidades a riqueza que encontramos nos livros litúrgicos. A porta da celebração dos 50 anos da revisão e elaboração dos novos livros litúrgicos é preciso resgatar ou implantar em nossas comunidades o serviço da Pastoral Litúrgica. Porém, está pastoral não pode ser compreendida apenas como uma equipe para a preparação e avaliação das celebrações, realizadas em uma comunidade, mas esta deve ser entendida como formadora de uma assembleia, na arte de bem celebrar.
            A Pastoral Litúrgica responsável pela formação da comunidade na ars celebrandi, deve trabalhar para que esta tome consciência da rica teologia litúrgica, presente nos ritos e preces que compõem os livros litúrgicos. Esta pastoral deve pouco a pouco, conduzir a comunidade cristã a consciência de que: “a liturgia é um grande rio no qual confluem toda a energia e manifestação do mistério, desde quando o corpo do Senhor vivo junto ao Pai, continua a ser oferecido aos homens na Igreja, pela vida dos mesmos. A liturgia não é uma realidade estática: uma recordação, um modelo, um princípio de ação, uma expressão de si ou uma evasão angélica.”[8] A formação da comunidade da arte de bem celebrar é um dos elementos esseciais para a salutar, participação da comunidade na liturgia. Quanto mais conhecemos os ritos e preces que utlizamos nas celebrações realizadas pela comunidade cristã, melhor vivenciamos o momento celebrativo. Onde todo o nosso ser é envolvido.
            Uma comunidade bem instruída, para bem celebrar o mistério da nossa Salvação,  certamente conseguirá compreender a riqueza da teologia litúrgica que permeiam as linhas que compõem um livro litúrgico. Consequentemente, se superará os preconceitos, sobretudo aquele que afirma que um o livro litúrgico, com seus ritos e preces é um instrumento incapaz de promover uma liturgia inculturada.
            Já que acenamos para a necessidade de uma formação, para melhor conhecermos os ritos e preces que utilizamos nas nossas celebrações, exortamos a todos, sobretudo, os responsáveis pela instrução do povo de Deus, a lerem as Praenotanda, dos livros litúrgicos. Nestas encontramos as  orientações para a compreensão dos elementos teológicos, pastorais e litúrgicos presentes nestes livros. “Estudar os próprios livros é a chave fundamental para celebrar em espírito e verdade a liturgia. E isso tanto com as introduções de cada livro como com seu conteúdo eucológico ou a seleção de leituras bíblicas, ou ainda a abordagem dos sinais sacramentais”.[9]
            Valorizar e respeitar os livros litúrgicos é reconhecimento do importante papel, que estes exercem na formação e no processo de amadurecimento da fé dos membros da comunidade cristã. Como membros da comunidade cristã não podemos conceber estes livros apenas como material de pesquisa, mas devemos assumi-los como o caminho para pensar uma liturgia capaz de levar em considerações elementos de uma cultura particular, que nos ajudam a celebrar de um modo ativo e consciente a Páscoa de Cristo, na Páscoa da comunidade. Zelemos como comunidade cristã, para que este tesouro guardado em vasos de barro, possa continuar transpondo gerações e se adaptando as diversas realidades culturais, exercendo assim a sua função primordial, tornar sempre atual o Mistério Pascal de Cristo, na vida da comunidade cristã, que no mundo busca continuar a presença salvadora do Redentor.
           
             

Bibliografia

Boseli, G., Il senso spirituale della liturgia, Qiqjon – Comunità di Bose, Magnano 2012.
Corbon, J., Liturgia alla Sorgente, Qiqajon – Comunità di Bose, Magnano 2003.
Russo, R., “Os livros Litúrgicos”, in VV.AA., Manual de Liturgia CELAM II. A celebração do mistério pascal: fundamentos teológicos e elementos constitutivos, Paulus, São Paulo 2011, 407-430. 
Sacrosanctum Concilium Oecumenicum Vaticanum II, “Constitutio de Sacra Liturgia Sacrosanctum Concilium (4 decembris 1963)”, AAS 56 (1964) 97-138.
Scicolone, I. – Farnés, P., “Libros litúrgicos”, NDL 1127-1144.
Tomatis, P. “La liturgia, forma fidei – forma vitae: un’obbedienza feconda”, RL 98 (2011) 237.




[1] SC 10
[2] Cf. SC 30
[3] SC 25
[4] I. Scicolone – P. Farnés, “Libros Liturgicos”, NDL 1127-1128
[5] R. Russo, “Os livros Litúrgicos”, in VV.AA., Manual de Liturgia CELAM II. A celebração do mistério pascal: fundamentos teológicos e elementos constitutivos, Paulus, São Paulo 2011, 407.  
[6] G. Boseli, Il senso spirituale della liturgia, Qiqjon – Comunità di Bose, Magnano 2012, 8.
[7] P. Tomatis, “La liturgia, forma fidei – forma vitae: un’obbedienza feconda”, RL 98 (2011) 237.
[8] J. Corbon, Liturgia alla Sorgente, Qiqajon – Comunità di Bose, Magnano 2003, 282.
[9] R. Russo, “Os livros Litúrgicos”, in VV.AA., Manual de Liturgia CELAM II. A celebração do mistério pascal: fundamentos teológicos e elementos constitutivos, Paulus, São Paulo 2011, 423.  

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